Marcelo Batista
Em junho deste ano, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara deu aval ao projeto de lei 3262/2019, para tornar legal a educação domiciliar fora da rede oficial de ensino. O "homeschooling”, na visão de muitas famílias e políticos, pode ser uma solução para que os pais possam oferecer um acompanhamento mais próximo dos filhos e evitem, por exemplo, discussões relacionadas a assuntos que poderiam, de alguma maneira, ser considerados "inadequados", como a esfericidade da Terra ou até mesmo discussões que rebatam o criacionismo. A situação chega a esse ponto em um contexto em que o sistema educacional está em frangalhos devido à falta de recursos e incentivo por parte do próprio governo federal.
A discussão sobre uma possível doutrinação ideológica começa, para muitos, nos últimos anos, mas na minha carreira esse papo já é antigo. Em 2013, recém-chegado em uma instituição de ensino, fui contratado para dar aulas de literatura e português para o ensino médio e tinha a missão de escolher uma obra literária para a leitura dos alunos durante a primeira etapa letiva. Minha escolha foi o livro “Feliz Ano Velho”, de Marcelo Rubens Paiva, que trata de forma autobiográfica do acidente que fez com que o personagem principal ficasse paraplégico. Mas, para um dos pais, minha escolha havia sido inadequada.
Em um e-mail denominado “Professor pornográfico de português”, fui achincalhado pelo pai, que se intitulava professor, músico, filiado a um determinado partido político e preocupado com a filha. Na visão dele, seria extremamente perigoso que a menina fosse submetida a palavras de baixo calão presentes na obra e a filha não faria os trabalhos correspondentes ao livro. Para solucionar o imbróglio, a situação ideal seria avaliá-la de uma maneira diferente, para não afetar a sua formação pedagógica ou, quiçá, psicológica.
Acuado com o teor do e-mail e com as diversas ameaças para convocar a imprensa na escola, consenti com a sugestão do pai e resolvi avaliá-la de uma maneira diferente, de forma, claro, que ela fosse favorecida e preservada. De lá para cá, entre idas e vindas, o fantasma da doutrinação afeta o corpo pedagógico das mais diversas instituições. Professores filmados, gravações de aulas, fotos e até divulgação de perfis em redes sociais têm sido algo costumeiro nos diversos grupos de pais que se multiplicam no WhatsApp para fiscalizar mais de perto a atividade docente.
Mas a vida é deliciosa e a Terra plana muitas vezes capota. Depois de alguns anos, a filha do pai indignado se tornou professora, inclusive muito conhecida e atua na área de Ciências Humanas, uma das mais perseguidas por discussões relacionadas à doutrinação ideológica. Mesmo que muitos não concordem, o problema, muitas vezes, não é a educação institucional, mas, sim, a convicção errônea de muitos pais de que podem controlar e determinar o futuro dos próprios filhos, em uma visão ideológica em que muitas vezes o que julga é o verdadeiro culpado.