A expressão “cabeça fria, coração quente” tomou conta do futebol brasileiro com o sucesso avassalador do Palmeiras, de Abel Ferreira. Expressão que, por sua vez, é título do livro escrito pelo treinador português. Mas, será mesmo que a razão e a emoção não se misturam, assim como a água e o azeite?
Sempre escutamos que para tomar uma boa decisão, devemos ter a cabeça fria, não se utilizando da emoção. Aliás, há quem diga que uma decisão baseada em emoção é um mero instinto. Sinto informar, mas para a neurociência esta afirmação não possui fundamentação científica. Ao contrário, a ausência de emoção pode destruir a racionalidade, como afirma António Damásio, um dos maiores neurocientistas do mundo.
De acordo com a literatura de Damásio, existem duas classificações de emoções: primárias e secundárias. As primárias ou universais são sentimentos como alegria, tristeza, medo, raiva, surpresa. Já as emoções secundárias, incluem o ciúme, culpa ou orgulho, assim como o que Damásio chama de emoções de fundo, como bem-estar ou mal estar, calma ou tensão.
As emoções primárias, recepcionadas pela amígdala, não necessitam de uma experiência prévia para se manifestarem. Por sua vez, as emoções secundárias sim, e esta é uma diferença fundamental, pois elas são desenvolvidas ao longo da vida, resultante de imagens mentais criadas. No cérebro, a estrutura do córtex pré-frontal está relacionado com as tomadas de decisão e a modulação do comportamento social, além de ser responsável pela atenção do indivíduo, auxiliando as habilidades para diferenciar pensamentos conflitantes, determinar o que é bom e mau, melhor e pior, igual e diferente. Assim, podemos relacionar as emoções secundárias aos processos de aprendizagem.
Os sentimentos nada mais são que representações cerebrais resultantes de emoções, isto é, uma percepção de um mapa cerebral. Quando somos confrontados com uma situação semelhante à já vivida, nosso mapa cerebral nos dá o sinal de quais emoções estão ligadas àquele tipo de situação (aprendizagem).
Imaginem um treinador cuja a ideia de jogo, em organização ofensiva, seja de posse de bola, rodando-a com paciência, primando pela sua manutenção, de modo a encontrar um espaço nas costas da defesa e criar situações de finalização. Isto requer diversas gestões no espaço de jogo, como ampliar o espaço efetivo de jogo (tornar o campo grande). Sendo assim, o treinador deverá criar atividades em treino e intervir de forma que os jogadores sintam (emoção) que tornar o “campo grande”, fará do sucesso mais próximo. Estas atividades devem se assemelhar ao máximo das situações encontradas no jogo, fazendo com que os atletas as resgatem como imagens mentais e repliquem o feito no treino com maior habitualidade. O sentimento/emoção gerado de prazer no treino, faz com que o cérebro assimile como recordação e diga: “isto foi bom, vamos repetir”.
Por outro lado, sem a intervenção adequada no treino, poderá surtir uma emoção negativa no jogador. Ao mesmo tempo, esta emoção negativa também pode ser explorada/manipulada, na qual o feedback do treinador no sentido de criticar e corrigir podem criar nos jogadores uma experiência prévia, para em situações futuras, não se repetir. O treinador deve promover as emoções de acordo com seus interesses e a modelação da equipe, dando preferência às emoções positivas.
As emoções positivas, através de um ambiente saudável, que gerem prazer e satisfação aos jogadores, promovem maior aprendizagem, como explicitado. Isto porque, outra situação a se buscar é o Estado de Flow, um estado mental que ocorre quando uma pessoa realiza uma atividade sentindo maior energia, prazer e foco na execução. Caso o ambiente não propicie isto, será dominado por emoções negativas que, por sua vez, prejudicam o processo de aprendizagem.
Abel Ferreira sabe muito bem da importância das emoções na modelação do seu jogo e da sua equipe. É notório o orgulho e a paixão pela construção do jogo que cada um dos seus atletas possui. Todos acreditam que a ideia de Abel é realmente coletiva. O prazer gerado no dia a dia e nos treinos, somado às experiências difíceis vividas, são o que tornam o Palmeiras forte mentalmente no futebol brasileiro, mesmo que às vezes tática e tecnicamente possa ser inferior ao adversário.
Abel sabe muito bem sobre o papel das emoções nos processos de aprendizagem e de um organismo sistêmico como uma equipe de 30 jogadores. O português tem consciência, na prática, de que uma boa aprendizagem não evita as emoções, as abraça. É exatamente o coração quente que torna a cabeça fria.