Manoel HyginoO autor é membro da Academia Mineira de Letras e escreve para o Hoje em Dia

O padecimento do Velho Chico

28/09/2016 às 20:10.
Atualizado em 15/11/2021 às 21:01

Com a morte entre pedras do protagonista de uma novela global, há alguns dias, o São Francisco voltou à primeira página dos jornais, extensa via fluvial que sempre esteve entre os conhecimentos elementares até das crianças brasileiras, que aprendiam sobre suas nascentes em São Roque de Minas, terra de queijo bom e de gente trabalhadora e hospitaleira.

No domingo que passou, dois diários belo-horizontinos – entre eles o que o leitor tem à mão – dedicaram-lhe amplas reportagens. Uma, advertindo para o estado de definhamento das pequenas correntes que afluem ao São Francisco e para as que já secaram; outra contendo a história da navegação que começa em Pirapora, com as águas ganhando força a caminho do Nordeste. 

As viagens pelo São Francisco foram por muitas décadas o sonho de gerações brasileiras, desejosas de conhecer a rica paisagem e as amáveis e simplórias populações ribeirinhas, a pesca abundante, os frutos nativos. Navios, ali chamados vapores, como o Benjamim Guimarães, Engenheiro Halfeld, Antônio Nascimento e outros, transportaram muitos milhares de pessoas entre Minas e os estados do Nordeste, inclusive na romaria de agosto até Bom Jesus da Lapa, na Bahia.

Tudo tem seu tempo, porém. As águas escassearam, foram corrompidas pelas indústrias e pela falta de proteção e de cuidados indispensáveis, causando dor e indignação aos brasileiros. Mais recentemente se percebeu também que as águas do Atlântico invadiam o São Francisco, deixando a população ribeirinha desprovida de peixe e água doce.

A notícia aprofunda a tristeza: o rio está sendo invadido pelo mar. Por força da estiagem dos últimos anos, a vazão, após a barragem do Xingó, reduziu-se desde o início de 2013, cem anos após o Benjamim Guimarães sair do Mississipi para vir para o Brasil. Sem vigor, o rio é tomado pela água do oceano, num fenômeno conhecido como “cunha salina”, provocando alterações no ecossistema e afetando o cotidiano das comunidades das margens.
As transformações saltam aos olhos: Crustáceos marinhos aparecem em Penedo, Alagoas, a cerca de quarenta quilômetros da foz. A situação se tornou mais grave em Piababuçu, a duas léguas do mar. Todos os dias, a captação de água a população é interrompida durante a maré alta.

Não só isso causa preocupação pelo aumento do sal na água, o número de pessoas com hipertensão cresce. O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco diz que a atenção para o problema é prioritário. Mas o Brasil tem muitas prioridades.

E a transposição do rio santo? Como ficou ou está, depois de bilhões investidos na obra portentosa? Preferimos as da Copa, ainda inconclusas e exigindo cuidados e muito dinheiro. O velho Ben Gurion, primeiro-ministro de Israel, ensinava que governar é fixar prioridades. Não aprendemos. Continuamos encalhados no processo de desenvolvimento, como as velhas embarcações presas às areias acumuladas no leito do Chico, que não geme, nem chora, mas padece as populações ribeirinhas.

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