Simone DemolinariPsicanalista com Mestrado e dissertação em Anomalias Comportamentais, apresentadora na 102,9 e 98 FM

Atravessando um deserto

Publicado em 23/02/2023 às 06:00.

Quando atendo um paciente que está passando por um algum sofrimento, digo a ele que iremos “atravessar um deserto” e a partir desse momento me uno a essa travessia.

O desafio dele é conseguir caminhar em condições precárias, num lugar desconhecido, com escassez de recursos - inclusive os próprios. Já eu conheço bem esse deserto, sei onde é pior para caminhar, onde o sol fica insuportável, onde a dificuldade aperta e sei também onde dá vontade de entregar os pontos. Meu paciente não sabe, mas é ele quem precisa caminhar e ainda suportar a própria dor.  Não é para qualquer um.

É importante deixar claro que milagres não acontecerão: ninguém irá “desligar o sol” nem transformar o deserto em um gramado verde. Às vezes, alguém pode até te dar um gole de água, mas ainda assim será necessário lidar com a sede.

Ao atravessar um deserto você não pode pedir ajuda para qualquer pessoa. Às vezes ela até quer te ajudar, mas pode estar atravessando um deserto também e você nem sabe. Outras, apesar de parecer que poderiam ajudar, não sabem como fazer ou são insensíveis e despreparadas, por isso tratam a dor do outro numa superfície rasa, dizendo coisas como : “vai passar”, ou “já passei por coisa pior”. Falas inócuas e sem nenhuma contribuição, primeiro porque essa informação não ameniza a dor, e segundo porque é um claro sinal de egoísmo falar de si enquanto quem precisa de ajuda é o outro. Precisamos saber ouvir. Quando você ouve alguém você permite que ele exista. Mas nem todos conseguem.

Quando um paciente confia em mim e me escolhe para ser sua “guia no deserto” eu fico atenda ao subtexto de cada palavra dita. Meu desafio é conseguir entrar no “software” dele com o “software” dele, e não com o meu. É algo parecido com o que os hackers fazem: usam a programação do outro para roubar dados. Já na minha condição preciso captar os recursos que o paciente tem para assessorá-lo na travessia árida.

Tendo o deserto como velho conhecido meu, à medida em que vou entendendo a condição do paciente, vou ajudando-o nos grandes e pequenos desafios. Digo para ele onde não é recomendável ir, onde são as paradas estratégicas e o momento certo para apertar o passo. Quando sinto que ele consegue dar um salto, mas está com medo, pego em sua mão e falo com segurança: "Pula, eu estou aqui e não vou deixar você cair". Ele confia e vai.

Perdi as contas de quantas vezes me emocionei presenciando esses saltos.

É interessante perceber que algumas pessoas se machucam ao pular, mas mesmo assim ficam felizes pois se sentem mais confiantes, além de orgulhosas de si. Isso às confere uma força extra para continuar a travessia, pois o deserto não acaba ali. Um deserto é longo.

Quando percebo a exaustão, faço uma pausa para pensar no melhor caminho. Nesse momento confiro com o paciente o que ele gostaria de fazer. Preciso ajudá-lo a diferenciar o medo real do ilusório e o tanto que se sente disposto, de verdade, a enfrentar esses medos. Quando estamos falando de emoção, tudo fica subjetivo e é difícil para ele conseguir descortinar suas limitações.

Se após um mergulho honesto dentro de si ele me disser que vai desistir, eu irei apoiá-lo. Vou chamar o resgate, mas, mesmo assim, ficarei ao seu lado quando a noite cair, o frio chegar, e vou deixar claro que minha companhia não está atrelada à travessia, e sim ao ser humano que ele é. Irei abraçá-lo e genuinamente considerá-lo um herói. Ainda que ele mesmo não se sinta assim.

A mim não é dado um termômetro para medir o nível da dor do outro nem o martelo de um juiz para julgar o certo e o errado. Me cabe apenas acolher, com amorosidade e companheirismo, as pessoas que me procuram.

Aos que pensam que eu os ajudo, gostaria que soubessem que eles me ajudam muito mais. Meus pacientes são verdadeiros mestres, a aprendiz sou eu.

Escrevo esse artigo no momento que atravesso o deserto do Atacama e tenho comigo um guia experiente. 

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