Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

A mulher que se negou a ser minha mãe

Publicado em 11/04/2025 às 06:00.

Aquela criança nasceu de um descuido, misturado com a rejeição da mãe e do pai. O pai, que todos conheciam por João Chapista, um homem fracassado em tudo, tentava esconder suas desilusões subjugando mulheres, fazendo-as se sentirem apaixonadas, dependentes, submissas a tal ponto que ele sentisse que era hora de ir embora. E ele ia, sem sentir nada: nem desprezo, nem poder. Ele só se sentia, talvez, mais vazio do que sempre fora.

A mulher nem era para ser a mulher com quem ele dividiria a mesma casa. Eles se conheceram num momento em que ele estava cansado de zanzar de uma para outra. A mulher chegou, caiu em sua armadilha, mas era mais arisca. Isso o desafiou. Ele foi ficando, para ver até onde iria aquela mulher, a primeira que resolveu desafiá-lo.

Casaram-se, mas nenhum deles queria ter filhos. João achava besteira, pois filho prende um homem no relacionamento. A mulher, apesar de apaixonada, ainda se sentia livre. Mentia para si mesma em relação à sua liberdade. Suas asas não pesavam porque ela voava dentro de uma gaiola e não percebia que a ilusão de ser livre era determinada pelo espaço que ele a deixava ter.

Foi descuido. Aquela criança nasceu desse descuido. João insistiu com a mulher, dizendo que não queria, pediu que ela procurasse alguém que pudesse ajudá-la num aborto, pois era despesa alta ter filho. A mulher também não queria. Pensou nos dias em que perderia seu corpo para uma criança que ela não amaria. João buscaria outras, pois ela não teria mais nenhum atrativo para ele. Ainda assim, pensando bem, mesmo que João se opusesse, a mulher resolveu manter a gravidez, como uma cartada arriscada de dar ao marido aquilo que o sempre manteve ali: um pouco de provocação.

Foram dias difíceis, de muita briga, de um homem que bebia para esquecer a mulher e sua barriga, e uma mulher que bebia para esquecer-se. Ela pesava demais, era preciso fazer alguma coisa para esquecer-se de vez.

A criança nasceu. Uma menina. O pai não foi ao hospital, não buscou a mulher e só voltou para casa bêbado, dias depois.

Não se sabe explicar, mas, com o passar do tempo, João pegou carinho pela criança e ódio pela mulher. Queria ir embora, mas a criança o encantava. A mulher, entendendo a situação, usava a criança de escudo, mas de lança e espada também. Agora era a mulher quem ameaçava ir e levar a criança. João desesperava e cedia. A menina tinha vários traços dele, e ele começou a ficar mais em casa e tentar ser o pai que ele nunca teve e de quem se ressentia até hoje. “Preciso ser melhor pai para minha filha do que foi o meu pai para mim”, dizia sempre aos amigos.

O amor de João pela criança despertou a ira da mulher, que tinha muito ciúme da filha que ela evitou tirar e que agora queria ver sumir. Mas, ainda assim, se a criança sumisse, a mulher sabia que João não teria motivo algum para ficar. A criança passou a ter esse papel para a mãe: de laço, de nó, de cadeado, de finca.

João, fracassado, via-se prosperar como pai, a única coisa que ele conseguiu fazer de útil e certeiro na vida. Ali ele se refastelava por conseguir anestesiar uma vida de infortúnios. A mulher nutria tanto ódio pela criança que já quase nem se importava mais em perder o João, em que ele fosse embora de vez.

E ele foi. Não foi porque quis, mas, num dia de trabalho, descarregando um caminhão, uma placa, sabe-se lá de quê, caiu em cima dele e tirou sua vida. A notícia chegou à casa daquela mulher como uma comida agridoce. Ela ainda não sabia definir que gosto tinha e qual era o da sua predileção. Mas os sabores não agradavam o seu paladar.

Dias se passaram, assim como os meses e os anos. A criança virou adolescente, e a mulher nunca conseguiu ser mãe, nem da adolescente que um dia foi criança. Só que uma coisa mal resolvida ainda era o incômodo que alimentava as duas: aquela mulher que queria tirar a criança e que escolheu não mais fazer algo desse tipo agora não suporta a sua voz. Os cabelos da adolescente na escova de pentear, que ficava em cima da pia do banheiro, incomodavam a mulher; o cheiro da colônia, o copo tirado do lugar, o tapete torto no chão, a toalha encharcada, as músicas ouvidas sem som, num fone de ouvido, ou berradas pelo alto-falante do celular — enfim, tudo incomodava a mulher.

Aos dezesseis anos da adolescente, numa noite em que ela chega da rua mais tarde, vinda de uma festa dos colegas da escola, a mulher não deu conta e a colocou para fora, debaixo de palavrões e atirando suas roupas pela porta.

A adolescente, que um dia foi criança, não sabia o que fazer. Não chorava para não dar esse gostinho àquela mulher, mas estava desesperada sem saber a quem procurar. Parentes que a recebessem, ela não tinha. Foi aí que ela procurou uma amiga e ficou por lá alguns dias. Decidiu ir para Belo Horizonte, arrumar um emprego, estudar, ter dinheiro e tirar o nome da mulher do seu registro.

A capital mineira é acolhedora. Chegando na rodoviária, a adolescente ganhou o mundo. Um mundo que ninguém sonha e que vai se fechando a cada mexida no tabuleiro da vida. Tentando um emprego de empregada doméstica, foi abusada por um patrão e posta para fora daquela casa, debaixo de: “Eu te dei um lugar para dormir, um emprego para você ter seu dinheiro e te tratei como alguém da minha família, e você vem na minha casa seduzir o meu marido?”

A adolescente, agora mulher, se prostituiu, se drogou, se perdeu, nunca mais se achou. Ela chorou, engoliu o choro para fazer-se de forte, se drogou ainda mais, se afundou. A rua não é companheira de ninguém. Não se dorme na rua: vai-se deixando.
No auge de um delírio, ela gritava: “Simone, Simone, Simone”. O Samu veio e conseguiu levá-la a um hospital, perto de onde ela estava. Parada cardíaca, mas ela voltou. Aquele corpo estendido na maca ainda tinha vida.

Depois de um período duro de abstinência, ela está mais forte. Perguntada se os viciados a chamavam de Simone, já que seu nome no registro era Poliana, a jovem, agora mulher, respondeu que não. Ali ninguém chama ninguém por nada. Perguntada por que ela gritava o nome Simone antes de ser conduzida para o hospital, ela disse: este é o nome da mulher que se negou a ser minha mãe.

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