O ônibus chegou perto do meio-dia na cidade do Serro/MG. Dei a entrada no hotel e fui direto a um restaurante para almoçar. Lugar bem gostoso, comida bem feita, atendimento legal, só que, como em diversos outros estabelecimentos similares, a televisão estava ligada. O canal de notícias apresentava o jornal do meio do dia, falando sobre o que havia acontecido até então em Minas Gerais. Eu poderia ter escolhido qualquer outra mesa, mas fiquei de frente para a TV, sem nem colocar consciência nisso.
Durante os quinze minutos que permaneci ali, não apareceu uma notícia que não fosse crime, barbárie, acidente e confusão. Pensei em mudar de mesa, mas resolvi ver até onde ia tudo aquilo.
Como eu lido com projetos sociais, sei de no mínimo trezentos, só na região da capital e Grande BH, que fazem trabalhos lindos, que investem em educação, cultura, saúde, esporte e assistência para promoverem vidas humanas, além da proteção à fauna e à flora. Esperei que alguma notícia dessas pudesse aparecer, já que todas as organizações estão em ação e funcionando sem parar.
Mas nada.
Os estudiosos dizem que há uma demanda imensa pelas “hard news”, que chamam a atenção da população que de alguma forma se reconhece ali, até mesmo para ficar vigilante, para que não aconteça algo similar consigo ou com sua família. As mídias se justificam dizendo que quem as pauta é a audiência, ou seja, se há um excesso de coisa ruim invadindo as mídias e as redes sociais, quem tem culpa nisso não é quem propaga, mas quem “paga pra ver”.
Antes de começar a escrever este texto, visitei portais de notícias da grande mídia e o que eu tinha em mente para escrever foi ainda mais justificado. Dou um exemplo: dois atores se envolvem numa discussão verbal com atrito físico numa movimentada rua de São Paulo. Um deles, adicto, esbraveja contra o outro, que vem ao seu encontro com muita fúria. Ressaltei o adicto porque os comentários, mais odiosos que a notícia, expõem ainda mais a vida de um pai, que sofreu e sofre pela dependência do álcool e que qualquer tropeço o lança para aquela vala do senso comum: “sabia que era questão de tempo para ele cair de novo”, numa fala figurativa de quem está lá embaixo, viciado na vida dos outros, esperando o outro cair.
O vídeo da briga foi postado primeiramente por um jornalista, ou alguém que se apresenta assim, que tem quase dezesseis milhões de seguidores em apenas uma rede social e que a sua própria vida, vira e mexe, também é exposta por outros que não o suportam.
Mas será que é por identificação que buscamos as notícias ruins, ou seria por curiosidade ou algum tipo de perversão?
Antes mesmo da televisão e das redes sociais, as tragédias já eram foco do teatro, que as usam para que possamos nos conectar com o todo e reconectar-nos a nós mesmos. “A tragédia como arte explora o sofrimento humano e busca extrair da plateia todo tipo de emoção e surpresa, além de fazê-la se identificar com personagens e vivências”, diz Luiz Scocca, psiquiatra pelo HC-FMUSP, em entrevista ao jornalista Marcelo Testoni, do UOL.
Porém, o que se observa hoje é uma exploração excessiva não mais das tragédias, mas das desgraças humanas. Uma pessoa vê a outra em apuros e filma para ganhar audiência, tentando alçá-la, por minutos que seja, da sua insignificância, que dói a ela mais do que a dor do outro.
Testoni, em sua matéria para o caderno VivaBem, do UOL, diz: “excessos provocam e estão relacionados a desequilíbrios. Então, faz mal quando esse negativismo passa a dominar o tempo todo as atenções e impede a pessoa de levar uma vida normal, ter ambições, aprender, falar sobre outros assuntos e ser leve. Como consequência, ela pode acabar saindo da realidade ou apresentar sintomas depressivos, ansiedade, pânico”. Isso porque focar demais no que é ruim libera cortisol, hormônio do estresse, que em excesso é prejudicial à saúde.
Desta forma, o crescimento da ansiedade da população mundial está muito relacionado aos hábitos atuais, que influenciam comportamentos e nos fazem experimentar momentos individuais e coletivos de sofrimento. Tanto é que o filme “Divertidamente 2” adicionou ao cérebro da adolescente uma nova emoção básica, para se juntar à raiva, nojo, tristeza, medo e alegria. Agora, Riley, a protagonista do filme, terá que lidar com a ansiedade.
O vício em tragédias até ganhou um termo em inglês: doomscrolling. “Trata-se, em resumo, da ‘tendência de continuar navegando ou percorrendo notícias ruins, mesmo que elas sejam tristes, desanimadoras ou deprimentes’, de acordo com o verbete do dicionário Merriam-Webster. A má notícia — garantimos que a nossa intenção não é fazer alarde — é que o doomscrolling provoca estragos na saúde física e mental”, diz o jornalista André Sollitto, da Revista Veja. Só como esclarecimento, numa tradução livre, o termo doomscrolling significa “rolagem da ruína ou do apocalipse”.