Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Antes de serem alunos, são filhos

Publicado em 28/03/2025 às 06:00.

— Tem dias em que me dá uma crise de ansiedade. Eu venho trabalhar, mas sinto uma angústia enorme. Tento entender o motivo, mas nada específico me vem à mente. Só sei que não estou bem — desabafou uma professora após uma palestra que ministrei em sua escola.

— A pressão vem de todos os lados, sabe? Temos que preparar aula em casa, planejar atividades, organizar o material. Mas isso eu tiro de letra; é o que mais gosto de fazer. O difícil são as cobranças que vêm de todo lado. E não são cobranças comuns a qualquer trabalho... é como se quisessem responsabilizar a escola por tudo — afirmou outra professora.

— Você acredita que, na escola onde uma amiga trabalha, uma família acusou uma das professoras de molestar um aluno? A comunidade ficou sabendo e tentou invadir a escola. Alguns pais, que conheciam o trabalho dela, ficaram ao seu lado. Depois descobriram que o abusador era um parente da própria criança. Como consertar isso na cabeça da professora? E o abalo emocional? — completou outra professora, em tom de confissão.

A série "Adolescência", que tem causado furor ao estimular debates nas redes sociais e reflexões sobre o papel da família, da escola e da sociedade, mostra algo intrigante. Apesar de ser uma produção inglesa, as questões sociais abordadas são universais. Os desafios vividos pelos adolescentes, as reações de dúvida e culpa dos pais, as brincadeiras cruéis, o bullying, os preconceitos, as atitudes segregacionistas e racistas nas escolas... tudo isso também acontece aqui. A diferença é que, no Brasil, não temos delegacias que oferecem cereal no café da manhã.

No contexto familiar, muitos pais desconhecem o que realmente se passa na vida dos filhos. Todos buscamos pertencimento, e os adolescentes não são diferentes. Copiam comportamentos, fazem coisas que contradizem o que lhes foi ensinado em casa. Nesses momentos, o diálogo se faz essencial — não um julgamento, mas uma conversa sobre bullying, sobre o quão vil é perseguir alguém por sua raça, religião, orientação sexual, condições financeiras, características físicas ou regionalidade. E sabe por que tudo isso é importante? A desumanização é a raiz de agressões e comportamentos abjetos e doentios.

Outro ponto sensível é o relacionamento entre pais e filhos. Muitos pais não sabem como se aproximar dos adolescentes. A linguagem é diferente, o universo parece distante. As tentativas, muitas vezes, são frustradas. E por falar em linguagem, muitos pais nem sabem que seus filhos possuem códigos específicos para se comunicar com os demais colegas.

Voltando à escola, a série da Netflix retrata um ambiente físico amplo, limpo e bem conservado, com profissionais de suporte como psicólogos e assistentes sociais. No entanto, há um complô de indiferença e egoísmo entre os alunos. Em uma das cenas, um policial, pai de um aluno, entra em sala e ouve piadas racistas direcionadas ao seu próprio filho. Nenhum freio moral, nenhuma empatia existe na turma, que ri jocosamente.

O que quero discutir aqui é que a escola é sempre o alvo. Se algo acontece fora do ambiente escolar, os jornalistas correm para saber como o aluno é em sala de aula, seu comportamento com colegas e professores. Se o fato ocorre dentro da escola, a conclusão imediata é que o sistema está falido. Só que esquecem que, antes de serem alunos, todos são filhos.

Ali também estão, com uma recorrência que não sei precisar, filhos mimados e malcriados, pais egocêntricos e, muitas vezes, o descaso público, que pouco investe em melhorias estruturais e culturais, nem em treinamentos técnicos e, muito menos, com foco na pessoa.

Quando algo vai mal em qualquer área, a primeira solução parece ser jogar a responsabilidade na escola. "O calor está aumentando? A escola tem que falar mais sobre mudanças climáticas e meio ambiente; as pessoas precisam saber mais sobre seus direitos? Tem que ser criada uma disciplina que fale sobre isso; o brasileiro não sabe empreender, monta um negócio, até com uma boa ideia, mas quebra em seguida? Tem que colocar uma disciplina de empreendedorismo e finanças pessoais na escola; as pessoas não têm respeito no trânsito? É preciso ensinar isso na escola."

E a família? E o Estado? E a igreja? E as empresas? E os órgãos oficiais? Todos parecem achar que a escola deve resolver tudo o que a sociedade não deu conta. Professores precisam lidar com inclusão, mesmo sem preparo ou apoio; enfrentar a violência sem retaguarda; trabalhar com estrutura física precária e ainda enfrentar a mídia, que por vezes quer apenas notícias ruins, sem se preocupar com o estrago emocional que causa.

Não se trata apenas de apontar problemas, mas de nomeá-los e construir uma rede de corresponsabilidade. Resolver questões complexas exige que cada um assuma sua parte. Os professores são profissionais essenciais na formação de uma sociedade melhor, mas ninguém deveria carregar esse peso sozinho.

É fundamental que os governos cumpram seu papel, investindo na educação pública de forma contínua e consistente. Famílias precisam participar ativamente do processo educacional, não apenas para cobrar resultados, mas para construir uma comunidade escolar mais saudável. Mas, antes disso, têm que se encontrar enquanto família. As empresas podem oferecer apoio por meio de programas de incentivo e investimento em projetos educacionais. Organizações da sociedade civil e instituições religiosas também têm seu papel no desenvolvimento do senso de comunidade e solidariedade.

A educação tem o poder de transformar trajetórias, mas essa transformação precisa ser um compromisso coletivo. O professor é uma peça fundamental, mas para que seu trabalho realmente floresça, é necessário que os outros atores sociais externos à escola interpretem melhor o seu papel.

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