Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Apesar da dor!

08/07/2021 às 17:13.
Atualizado em 05/12/2021 às 05:22

Um dia fui convidado para gravar um TEDx pela PUC Minas, universidade pela qual tenho grande carinho e onde lecionei e coordenei cursos de pós-graduação. Os organizadores, conhecendo o meu trabalho social, pediram para que eu falasse sobre esse assunto. Pensei muito no que poderia contar numa fala bem curta, já que as palestras são de 18 minutos.

Não queria discorrer só sobre as histórias vividas em cada uma daquelas áreas sociais em que atuo junto ao movimento voluntário que coordeno. Resolvi, então, fazer uma pesquisa empírica, tentando entender o que faz com que homens e mulheres, sendo adolescentes, adultos e idosos, sintam que vale a pena viver. E sondei até mesmo se realmente eles têm esse sentimento ou se essa era uma percepção equivocada que eu tinha.

Informalmente fui conversando com as pessoas: sentei-me para conversar com pacientes em hemodiálise; fui em diversos asilos, hoje chamados de ILPIs, para ouvir as histórias e sentir se há algo que fizesse com que aquelas idosas, em sua maioria, buscassem viver melhor seus dias e a perspectiva de futuro que tinham, estando numa instituição de longa permanência.

Busquei entender o que mantinha as pessoas privadas de liberdade persistentes em cumprirem uma longa pena e saírem de dentro das grades de um presídio para a “rua”. Depois de 20 anos presos, por exemplo, há algo que os motive a viver dia após dia ou simplesmente eles existem? Lembrei muito dos relatos feitos em livros de sobreviventes dos campos de concentração nazistas, de autores como Viktor Frankl, Primo Levi, Edith Eva Eger, dentre outros.

Chamei alguns adolescentes que estavam para sair das casas de acolhimento, que comumente chamamos de abrigo – uns ainda falam orfanatos, um nome bem estigmatizado, inclusive por filmes. Troquei umas ideias com outros que já haviam saído e, sem família, tinham que se manter “sozinhos”, sem o abrigamento público que os acolhia.

Alguns dependentes químicos e ex-moradores de rua, assim como homens que ainda viviam em situação de rua, também foram ouvidos.

Mas resolvi conversar também com os cuidadores de idosos das ILPIs, assim como fiz com os enfermeiros dos hospitais. Falei com as psicólogas dos abrigos e com as coordenadoras de repúblicas que acolhem as pessoas em situação de rua.

Pronto, agora eu tinha que organizar essas ideias para ver o que havia em comum em seus depoimentos, para entender o que faz as pessoas terem vontade de continuar a sua vida, mesmo em meio a tantas tribulações, com perdas brutais ou com sucessivas experiências sofridas.

Percebi que muitas pessoas tinham diversas feridas abertas, não cicatrizadas, vindas da sua própria infância. Questões que não tinham sido resolvidas, ciclos que não tinham sido encerrados, mas muito além disso: uma dor profunda que foi suplantada por uma sequência de outros sofrimentos não resolvidos.

Vi que esse acúmulo de dor, quando a pessoa não teve em sua vida alguém próximo para acolhê-la, parecia uma lesão nada superficial, que ainda se mostrava como uma chaga. Na prática, quem sofre e tem alguma pessoa de referência com quem possa contar, expor seus sentimentos, essas feridas deixam cicatrizes, mas não ficam, pela vida toda, em “carne viva”. Quando há dor, mas não se está sozinho, inclusive na infância e a adolescência, fica mais “fácil” entender ali um sentido, talvez um aprendizado, com menos possibilidades de traumas acumulados.

As pessoas que conseguem lidar com as situações da sua vida vão se fortalecendo. Isso não significa perda de sensibilidade, mas uma busca de entendimento da própria situação. O que falo de não se sentir sozinho é que muitas vezes, com apoio de um familiar, amigos, professores, pessoas que nos dão conforto, a dor fica mais suportável.

Além de tudo isso, tenho que dizer a vocês que uma palavra, de uma forma ou de outra, estava sempre presente nas falas de todos. Era a esperança, um termo que muito me incomodava e que, depois desse “estudo”, me detive a pesquisar um pouco mais.

Era a esperança de uma adolescente do abrigo em sair dali e construir uma família, alguns deles tendo a necessidade de mostrar para os primos, tios, pessoas que os magoaram na ausência de uma mãe biológica, que eles eram capazes de ser alguém, de conduzir sua própria família e vida.

A esperança de uma pessoa que vive na rua em conseguir a confiança da família de novo ou, em um ou outro caso, de se perdoar por algo que tenha cometido. Essa tal esperança está naquele homem atrás das grades, que viu tantos dos seus dias irem embora num cubículo lotado de outros homens -  e quem sabe de outros tantos sonhos.

Mas é ela também que motiva o jovem dependente químico a provar para todos que consegue ser forte, ficar livre daquilo que hoje parece mais forte que ele próprio. Nos olhares de adultos com mais rugas do que o “normal” para a sua idade, há lágrimas querendo sair, lembrando e cobrando de si, às vezes em excesso, a dor que provocaram ao outro.

Na cadeira de um hospital, sem uma esperança mais palpável de uma doação de rim compatível, estão pacientes que vão três vezes por semana, em sessões de quatro horas, fazer sua diálise. Pelo que senti, a esperança não está especificamente no transplante, para muitos casos, mas na vida, que a máquina que filtra o seu sangue os dá a cada dia.

A esperança que mais me incomodou foi a de alguns idosos. Muitos falavam de cuidar das suas flores, tomar um café gostoso, mas a maior esperança era a visita dos filhos. Uma das idosas me marcou muito, pois disse esperava todo mês a família ir visitá-la. A esperança, que às vezes se confunde com esperar, pode ser a mesma, que em outra perspectiva, nos faz caminhar apesar da espera.

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