Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Aprendendo com as crianças

Publicado em 22/07/2022 às 06:00.

Desde o início da pandemia não visito as casas de acolhimento para crianças e as creches onde desenvolvíamos nossos trabalhos voluntários. Ali era onde eu tinha mais contato com o universo infantil, uma vez que meu dia a dia é recheado de adultos.

Talvez esta história que vou contar seja tão normal para muitos pais, que participam do desenvolvimento dos filhos e os estimulam a terem suas experiências e aprendizados, incentivam o lúdico e valorizam os relacionamentos respeitosos.

Pois bem, num domingo desses fui passar uma tarde entre amigos, sendo recebido por um casal e seus dois filhos, crianças ainda. O lugar chamou atenção por si só: uma casa, com ares de sítio. Já na entrada, galinhas criadas soltas no terreno nos saudavam a chegada. Ao subir a estradinha dentro da propriedade encontramos perus, cabras e coelhos. 

Uma horta ao fundo da casa enchia de cheiro e sabor o almoço daquele dia. Lembro uma vez que fui a Berlim e a nossa anfitriã brasileira, que reside há anos na Alemanha, nos levou para jantar num restaurante de cegos. Logo na recepção a gente escolhe o prato por nomes sugestivos, sem saber o que de fato vai comer. Ao entrar no salão, tudo muito escuro. O primeiro prato é o mais difícil de comer, pela situação embaraçosa de não saber o que tinha ali. Senti um cheiro bom, que nunca tinha percebido em uma salada. Na saída, quando descobrimos o que nos serviram, me assustei de ter comido uma folha tão cheirosa e saborosa que era, simplesmente, alface.

Quando vi aquela horta lembrei deste caso, pois na correria diária, deixamos de sentir o cheiro ou gosto das refeições, engolidas mecanicamente. 

Durante o almoço, as crianças sugeriram um jogo. Acho que vou levar esta técnica para outros lugares, pois ficou bem divertido e tão leve aquele momento, numa descontração amistosa. A brincadeira chama, se me lembro bem, “porquinho fedorento”. Deve ter a ver com a rapidez que temos que responder o que se propõe e passar a vez para o outro, não nos demorando com o “porquinho”. 

Uma das crianças explica a regra: a gente escolhe o tema e cada um tem que falar, na sua vez, um nome associado àquele tema, independente da letra que se inicie. Nós escolhemos brincar com os nomes de países.

Pode parecer fácil, mas vai dificultando à medida que nosso conhecimento geográfico se torna escasso. Aí um vai ajudando o outro com dicas. Inclusive esta parte eu acho que foi uma forma de adaptação solidária.

Logo após o almoço, as crianças pedem aos pais a autorização para fazerem uma festa de aniversário para as galinhas. Tendo a permissão dos adultos, as  crianças se põem a convidar os vizinhos mais próximos da residência. Eles fazem o bolo de micro-ondas dentro de uma caneca e uma vela de aniversário quebrada, mas com pavio intacto, foi descoberta e usada.

Lá fora, uma mesa foi posta e enfeitada com bandeirolas. Quando o último vizinho chegou, foi a hora de convidar as galinhas e perus, que vieram agitados, junto às galinhas d’angola, sonoras feito elas.
Todos em volta da mesa, é a hora de cantar os parabéns e soprar a velinha, diversas vezes, o que as crianças fizeram em nome das aniversariantes.

A felicidade da criançada era incrível e me transportou para a minha infância, quando numa rua de Santa Luzia, com poucos carros transitando, tínhamos o hábito diário de brincar de rouba-bandeira, pique-esconde e queimada. Soltávamos pipa naquela rua calçada de pedrinhas e corríamos da chuva que chegava disforme.

Éramos, em minha época, crianças pobres e ricas, brancas e negras, magras e gordas que não se diferenciavam por isso, mas que se identificavam por serem crianças. Havia conflitos? Lógico. Todos resolvidos ali mesmo, já que os pais não tomavam as dores dos filhos, mas conversávamos, como numa comunidade mesmo.

Nós aprendemos a diversidade de forma tão natural, pois estávamos desde sempre integrados e, por isso, em nossa percepção, éramos todos iguais, sendo filhos de militares, vendedores, professoras ou domésticas.

Quando uma “educação” blinda demais as crianças, percebemos que elas não vivem o que poderiam e acabam se quebrando por dentro. A melhor proteção é aquela com a qual aprendemos a entender nosso papel em cada situação. Mas é tão bom ter uma referência, preferencialmente o pai e mãe, para nos apontar estes caminhos.

Senti naquela tarde uma alegria por ver crianças brincarem. Mais ainda por ver que criavam suas brincadeiras e integravam a sua “aldeia”, a sua comunidade, de maneira respeitosa e participativa. Que a gente faça de tudo para que crianças possam ter infância.

*Palestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

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