Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

E o tanto que os olhos falam!

Publicado em 07/04/2023 às 06:00.

Quando me convidaram para dar palestras para os funcionários de uma instituição que cuida de crianças com paralisia cerebral, queria entender quem eram as pessoas com quem eu falaria e isso passava por conhecer um pouco, também, quem eram as crianças, adolescentes e adultos daquela instituição.

Fui em busca de informações com as mais diversas fontes, sempre fazendo a mesma pergunta: o que é uma pessoa com paralisia cerebral? Logicamente, cada um dava sua resposta vinda do seu ponto de visão. É bem interessante isso, pois quando falamos em empatia, sempre citamos que é se colocar no lugar do outro. Mas não adianta este esforço se você for carregado dos seus próprios contextos e não se abrir para entender o outro no contexto dele.

Dentre tantas respostas consistentes à minha pergunta, uma se fixou à minha mente, e não por coincidência foi a pior delas: são crianças que vivem mortas dentro de um corpo, disse-me um conhecido.

Incoerente, insensível, limitante.

Tempos depois, vim entender que esta pessoa não descrevia o outro. Sem saber ela falava de si próprio. Ela, carregada dos seus contextos, era aquela própria pessoa que estava morta, vivendo. Pena que eu não tive maturidade suficiente para entender aquele pedido de socorro, pois fui tomado pela raiva do peso da sua fala.

Marcada a palestra, cheguei mais cedo para passar nos quartos e conhecer os residentes da instituição antes de iniciar a fala para os funcionários. Em cada cama, um nome à frente identificava, personalizava para ficar mais claro, quem ali eu encontraria. Abaixo do nome, a data de nascimento, que nos lembrava que a abordagem não deveria ser infantilizada, em alguns casos, pois a pessoa, com o corpo encolhido, já não era mais uma criança. Por trás de cada nome, uma pessoa e suas tantas histórias.

Uns sorriam, outras dormiam, outras nos seguiam com os olhos. Uma enfermeira me disse que todos eram muito intensos em tudo, então, se eu quisesse me comunicar de fato com eles, era só olhar em seus olhos.

Eu sou graduado em Comunicação Social, lecionei anos nesta área, e foi aqui que eu descobri na prática, ou despertei para isso, que todo comportamento é uma forma de comunicação.

A sensação é estranha, de início. Foi para mim e deve ser para eles. Em alguns você toca as mãos e eles seguram e apertam, em outros o olhar invade a alma da gente. Um voluntário tocava violão e o adolescente, numa cadeira de rodas, ria com uma alegria incomparável, estalando os dedos no ritmo da música.

Aos poucos um desconforto, peço permissão para usar este termo, vai dando lugar a uma sensação que eu não consigo descrever bem, mas que diria ser de familiaridade, no sentido de acolhimento. Fui olhando cada pessoa e entendendo que pelo olhar eu acessava mundos diversos. Meu olhar foi mudando, a cada mundo que eu encontrava. Mas não era o olhar de olhos nos olhos, mas aquele que me leva a entender a vida de uma maneira diferente, menos limitada e mais ampla, talvez com um sentido de humanidade ainda maior. E isso não tem a ver com pena ou dó, mas com quebra de barreiras que construímos diante de cada um de nós e nos impedem de ver além.

“Qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa”, dizia Belchior.

Saí dos quartos e fui fazer aquilo que havia motivado a visita: dei a palestra para os funcionários, que apesar do amor pelas pessoas e pelo que fazem, têm um cansaço emocional e físico imenso, proveniente da demanda e das características daquele trabalho. Quando eu conduzia a minha fala, os olhos de quem me ouvia estavam marejados, parece que era aquele um momento permitido para liberar as emoções retidas pelo excesso de atividades e pelo passar do tempo.

Ao término da palestra, umas pessoas pediram para conversar um pouco: uma tinha um filho dependente químico, outra estava com um irmão preso, outra com a mãe acamada, outra e mais outra com suas questões também. Mais uma vez me vem à mente o Belchior, na música “Na hora do almoço”, em que a mãe diz que aquela não é a hora para brigar. Quem demonstra fragilidade no trabalho não está emocionalmente preparado para ficar nesta empresa, dizem uns empregadores. Assim, engula seu choro e vá trabalhar.

Não era o caso daquela instituição, mas é a cultura de muitas empresas, de uma competição mortal disfarçada de práticas colaborativas.

Esta minha primeira palestra numa instituição que acolhe pessoas com paralisia cerebral deve ter acontecido há uns 15 anos, mas foi um momento impactante que carrego até hoje pelo vigor na troca de olhares. É impressionante como os olhos falam.

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