Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Enem e a reflexão necessária sobre envelhecer no Brasil

Publicado em 14/11/2025 às 06:00.

Há quem critique algumas questões do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e há quem as elogie. Um ponto que une os dois lados foi a escolha do tema da redação, centrado nas perspectivas sobre o envelhecimento na sociedade brasileira.

A revolução mais profunda do nosso tempo talvez não esteja nas tecnologias que carregamos no bolso, mas no que carregamos no corpo. Sem alarde, sem manchetes, sem o barulho habitual das grandes mudanças, estamos testemunhando uma transformação histórica: envelhecer deixou de ser exceção e virou regra. E, mesmo assim, seguimos olhando para a longevidade como um problema estatístico, uma equação de custos, uma curva demográfica que ameaça o futuro. O que talvez ainda não tenhamos percebido é que essa curva não aponta para o declínio, mas para um novo território cultural, emocional e social. Um território onde velhice e futuro caminham lado a lado.

Outro dia conheci dona Celina, de setenta e quatro anos, moradora de uma pequena cidade do interior. Ela me disse algo simples: “Descobri que não estou velha para nada, só estou velha para perder tempo”. Contou que começou a estudar fotografia depois dos sessenta, que viaja sozinha quando dá vontade e que, uma vez por mês, reúne jovens da comunidade para ensinar o que aprende nas aulas: luz, enquadramento, paciência para observar. Enquanto falava, segurando a câmera com firmeza, percebi que ali estava a tal revolução silenciosa: uma mulher que reinventava o próprio tempo, costurando memórias e futuros.

Pessoas como dona Celina mostram o que muitas vezes deixamos de enxergar. O envelhecimento não é uma conta a ser paga pela sociedade, mas uma fronteira de inovação humana. É nele que surgem novas formas de morar, conviver, trabalhar, relacionar, amar e pertencer. As moradias colaborativas crescem, os projetos intergeracionais florescem, os cafés comunitários se tornam centros afetivos. Há gente de sessenta, setenta, oitenta anos criando negócios, estudando, vivendo amores tardios e necessários. O futuro não é jovem ou velho; é coletivo, plural e longo. E justamente por ser longo exige vínculos, redes, encontros.

No entanto, vivemos mergulhados em um paradoxo cruel. A solidão, que muitos acreditam ser destino biológico da velhice, tornou-se uma epidemia moderna que atravessa todas as idades. Não é o corpo que anuncia a solidão, mas as rupturas sociais que a alimentam. E para enfrentá-la não basta tecnologia, nem remédios: é preciso criar espaços de convivência, recuperar praças, estimular trocas, formar grupos de leitura, de conversa, de escuta. Solidão não é fraqueza individual, é ausência de vínculo coletivo. É sintoma de uma sociedade que ainda não entendeu que o encontro é uma necessidade básica.

Os afetos, essa matéria sutil e profunda, têm ação direta sobre a longevidade. A ciência confirma o que a vida sempre soube: viver muito depende também do amor que trocamos e recebemos. Quando os vínculos se fragilizam, nós também nos fragilizamos. Quando se fortalecem, sustentam o corpo e a alma. A conhecida pesquisa de Harvard sobre desenvolvimento humano mostra que são as relações significativas que nos mantêm saudáveis e felizes ao longo das décadas. É por isso que grupos de caminhada e de dança, rodas de conversa, cafés entre amigos produzem efeitos tão potentes quanto exames e tratamentos. Ali se compartilham histórias, se distribuem esperanças, se cria pertencimento. Ali a saúde social encontra sua forma mais bonita.

Mas é preciso dizer: envelhecer não é igual para todos. No Brasil, a velhice tem cor, classe e geografia. Os dados trazidos pelo pesquisador Roudom Ferreira Moura, em pesquisa de 2021 pela USP, escancaram o que já sabemos nas entrelinhas: a frase “O Brasil é negro, mas o envelhecimento é branco” não é retórica, é realidade. Pessoas brancas vivem mais e melhor. Têm mais acesso à saúde, a ambientes seguros, a tempo de descanso, a lazer. Enquanto a população negra e pobre envelhece em condições adversas, muitas vezes sem cuidados, sem escolha, sem segurança. Envelhecer, por aqui, ainda é privilégio social. Por isso, falar de longevidade sem falar de justiça é tapar o sol com a peneira. O futuro só será verdadeiramente nosso quando todos puderem envelhecer com dignidade.

Há também o corpo, esse território político que carrega marcas do tempo. Vivemos em uma cultura que teme a maturidade, que transforma rugas em defeitos, que reduz a beleza a um padrão impossível. O corpo que envelhece é visto como falha, como algo a corrigir, disfarçar, esconder. Assumir o próprio corpo é um ato de resistência. É reivindicar o direito de ser quem se é, fora das lentes estreitas da juventude eternizada. Envelhecer com autenticidade é libertar-se do olhar alheio, é escolher a própria narrativa.

E as narrativas importam. O cinema, a televisão e a publicidade ainda insistem em retratar o idoso como figura caricata: o ranzinza, a avó prendada, o aposentado entediado. Faltam histórias que mostrem a intensidade da velhice, seu humor, suas descobertas, seus desejos. Precisamos de mais personagens que sonham aos setenta, que começam uma faculdade aos oitenta, que se apaixonam em qualquer idade, que mudam de país, que aprendem um instrumento, que celebram a vida sem pedir licença para o calendário. Enquanto tratarmos o envelhecimento como fim de linha, negaremos a potência do tempo.

É nessa travessia que surge a ideia da juventude reversa, essa reinvenção da juventude interior que floresce justamente na maturidade. O corpo pode desacelerar, mas a alma encontra outro ritmo. Menos pressa, menos necessidade de provar algo a alguém. É quando podemos ser mais verdadeiros, mais inteiros, mais simples. Sua fala não tem que ser pinçada pelo medo de perder um emprego ou seguidores. 

A reciprocidade geracional é o grande segredo para construir sociedades que durem. Há quem diga que os velhos ensinam e os jovens aprendem. A realidade é mais rica. Cada geração entrega e recebe. O jovem oferece energia, inquietação, ousadia. O mais velho oferece perspectiva e memória. Quando esses mundos se encontram, nasce algo precioso: aprendizagem mútua. Um aponta o futuro, o outro ensina o tempo presente.

Envelhecer não é caminhar para fora do mundo. É caminhar para dentro dele, com outras lentes. É descobrir que a vida pode ser longa, mas só será plena se for compartilhada, e não precisa ser com uma multidão, mas com quem oferece sentido à relação.

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