Há quem critique algumas questões do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e há quem as elogie. Um ponto que une os dois lados foi a escolha do tema da redação, centrado nas perspectivas sobre o envelhecimento na sociedade brasileira.
A revolução mais profunda do nosso tempo talvez não esteja nas tecnologias que carregamos no bolso, mas no que carregamos no corpo. Sem alarde, sem manchetes, sem o barulho habitual das grandes mudanças, estamos testemunhando uma transformação histórica: envelhecer deixou de ser exceção e virou regra. E, mesmo assim, seguimos olhando para a longevidade como um problema estatístico, uma equação de custos, uma curva demográfica que ameaça o futuro. O que talvez ainda não tenhamos percebido é que essa curva não aponta para o declínio, mas para um novo território cultural, emocional e social. Um território onde velhice e futuro caminham lado a lado.
Outro dia conheci dona Celina, de setenta e quatro anos, moradora de uma pequena cidade do interior. Ela me disse algo simples: “Descobri que não estou velha para nada, só estou velha para perder tempo”. Contou que começou a estudar fotografia depois dos sessenta, que viaja sozinha quando dá vontade e que, uma vez por mês, reúne jovens da comunidade para ensinar o que aprende nas aulas: luz, enquadramento, paciência para observar. Enquanto falava, segurando a câmera com firmeza, percebi que ali estava a tal revolução silenciosa: uma mulher que reinventava o próprio tempo, costurando memórias e futuros.
No entanto, vivemos mergulhados em um paradoxo cruel. A solidão, que muitos acreditam ser destino biológico da velhice, tornou-se uma epidemia moderna que atravessa todas as idades. Não é o corpo que anuncia a solidão, mas as rupturas sociais que a alimentam. E para enfrentá-la não basta tecnologia, nem remédios: é preciso criar espaços de convivência, recuperar praças, estimular trocas, formar grupos de leitura, de conversa, de escuta. Solidão não é fraqueza individual, é ausência de vínculo coletivo. É sintoma de uma sociedade que ainda não entendeu que o encontro é uma necessidade básica.
Os afetos, essa matéria sutil e profunda, têm ação direta sobre a longevidade. A ciência confirma o que a vida sempre soube: viver muito depende também do amor que trocamos e recebemos. Quando os vínculos se fragilizam, nós também nos fragilizamos. Quando se fortalecem, sustentam o corpo e a alma. A conhecida pesquisa de Harvard sobre desenvolvimento humano mostra que são as relações significativas que nos mantêm saudáveis e felizes ao longo das décadas. É por isso que grupos de caminhada e de dança, rodas de conversa, cafés entre amigos produzem efeitos tão potentes quanto exames e tratamentos. Ali se compartilham histórias, se distribuem esperanças, se cria pertencimento. Ali a saúde social encontra sua forma mais bonita.
Mas é preciso dizer: envelhecer não é igual para todos. No Brasil, a velhice tem cor, classe e geografia. Os dados trazidos pelo pesquisador Roudom Ferreira Moura, em pesquisa de 2021 pela USP, escancaram o que já sabemos nas entrelinhas: a frase “O Brasil é negro, mas o envelhecimento é branco” não é retórica, é realidade. Pessoas brancas vivem mais e melhor. Têm mais acesso à saúde, a ambientes seguros, a tempo de descanso, a lazer. Enquanto a população negra e pobre envelhece em condições adversas, muitas vezes sem cuidados, sem escolha, sem segurança. Envelhecer, por aqui, ainda é privilégio social. Por isso, falar de longevidade sem falar de justiça é tapar o sol com a peneira. O futuro só será verdadeiramente nosso quando todos puderem envelhecer com dignidade.
Há também o corpo, esse território político que carrega marcas do tempo. Vivemos em uma cultura que teme a maturidade, que transforma rugas em defeitos, que reduz a beleza a um padrão impossível. O corpo que envelhece é visto como falha, como algo a corrigir, disfarçar, esconder. Assumir o próprio corpo é um ato de resistência. É reivindicar o direito de ser quem se é, fora das lentes estreitas da juventude eternizada. Envelhecer com autenticidade é libertar-se do olhar alheio, é escolher a própria narrativa.
É nessa travessia que surge a ideia da juventude reversa, essa reinvenção da juventude interior que floresce justamente na maturidade. O corpo pode desacelerar, mas a alma encontra outro ritmo. Menos pressa, menos necessidade de provar algo a alguém. É quando podemos ser mais verdadeiros, mais inteiros, mais simples. Sua fala não tem que ser pinçada pelo medo de perder um emprego ou seguidores.
A reciprocidade geracional é o grande segredo para construir sociedades que durem. Há quem diga que os velhos ensinam e os jovens aprendem. A realidade é mais rica. Cada geração entrega e recebe. O jovem oferece energia, inquietação, ousadia. O mais velho oferece perspectiva e memória. Quando esses mundos se encontram, nasce algo precioso: aprendizagem mútua. Um aponta o futuro, o outro ensina o tempo presente.
Envelhecer não é caminhar para fora do mundo. É caminhar para dentro dele, com outras lentes. É descobrir que a vida pode ser longa, mas só será plena se for compartilhada, e não precisa ser com uma multidão, mas com quem oferece sentido à relação.