Num cantinho escondido entre as montanhas da Grande BH, onde a manhã chega sem barulho e os galos ainda cantam — parte pra anunciar o dia, parte pra atrapalhar o sono de quem queria dormir mais um pouco — vive Dona Geralda. Uma senhora de quase cem anos — 92 para ser exato — com olhos que já viram muita coisa nesta vida, mas que ainda se surpreendem com o voo de uma borboleta no quintal. O coração dela bate no ritmo diferente: calmo, firme, cheio de esperança. Porque ali, a vida não corre, ela amadurece.
O sítio onde mora parece ter saído de um retrato antigo, daqueles com bordas amareladas e cheiro de papel guardado em baú. A casa é feita de adobe e tem alma. Os batentes são gastos pelo tempo, e cada rangido do assoalho parece contar um pedaço da história. O fogão a lenha fica do lado de fora, embaixo de um puxado simples, coberto por telhas de barro, onde o tempo chove em lembranças.
Dona Geralda acorda antes do dia se tornar claro. Quando ainda é noite para o mundo, ela já está sentada na beirada da cama, coberta com uma colcha de retalhos, que ela ganhou de uma comadre há muitos anos. Fecha os olhos e ora. Agradece pela noite, pelos dias que já se foram, pelos que ainda hão de vir. Depois se levanta, enrola um xale ou cachecol nas costas, calça um sapatinho de pano e vai em direção à cozinha, com passos curtos, mas decididos.
O café é passado num coador de pano, manchado de tempo e afeto. A água canta no bule esmaltado, enquanto o aroma invade a casa como uma visita bem-vinda. A colher mergulha no açúcar com generosidade. Mas coloca generosidade nisso. É tanto açúcar que chega a doer a boca. “Pra tirar o amargor da vida”, ela diz, rindo com os olhos. E serve o café numa xícara descascada nas bordas, mas ainda cheia de graça. E de uma quentura que só os lábios e os dedos sabem do que estou falando.
Com o avental florido amarrado à cintura, Dona Geralda prepara quitandas como quem borda saudade. Pão de queijo, bolo de fubá, rosquinhas, biscoito de polvilho. Cada receita tem uma história, uma lembrança, um segredo. E tudo é feito com a paciência de quem sabe que o tempo não se corre, se acolhe. Ela não cozinha para vender. Cozinha para acolher. Para receber os netos que chegam nos fins de semana, algum vizinho que aparece sem avisar, o moço da estrada que pede um copo d’água e sai com o coração quente.
A porta da casa dela não tem tranca. Tem alma aberta.
Dona Geralda mora sozinha, mas não vive só. Conversa com as plantas, com as galinhas, com os retratos na parede. Com o rádio antigo que toca modinhas sertanejas e noticiários que ela ouve com meio ouvido, pois a atenção está nas trempes do fogão. Às vezes, senta na cadeira de balanço da varanda e tricota. Outras vezes, apenas observa o horizonte, como quem lê o tempo. Ah, e todos os dias coloca um copo d’água em cima do rádio na hora da oração, às 18h em ponto.
Em uma visita que a fiz, perguntei com certa hesitação:
— “A senhora não sente medo de viver sozinha nesse lugar tão isolado?”
Ela parou por um instante. Olhou para o céu, como quem consulta as nuvens, mas com convicção no que ia falar, e respondeu:
— “Medo a gente vai perdendo com o tempo, meu filho. O que sobra, se Deus quiser, é só coragem.”
Insisti, talvez mais preocupado do que curioso:
— “E se a senhora cair? Tropeçar? Se machucar?”
Ela sorriu com a tranquilidade de quem já viu muito mais do que a vida costuma mostrar, e respondeu com doçura firme:
— “Aí eu me preocupo quando acontecer. Sofrer por coisa que nem chegou é gastar tempo que podia ser de viver. Deus me deu o agora. O depois não é meu.”
Essas filosofias que brotam da lida não se aprendem em livro. Vêm do barro, do roçado, do luto, das perdas e de um tanto de coisas mais. Vêm da fé que não se grita, mas que mora calada dentro do peito.
Ali, naquele cantinho, tomei o café mais gostoso, apesar de dulcíssimo, da minha vida. Comi um doce chamado 'amor em pedaços', que, quem já provou, sabe bem por que ele recebe esse nome. Também provei cocada branca com gosto de infância e biscoito frito. Antes de partir, ela embrulhou alguns doces de leite em formato de losango num guardanapo bordado à mão, como quem oferece não só um presente, mas um gesto, um pedaço de si.
Enquanto me despedia, ela disse:
— “Leva, meu filho. É bom ter um pouquinho de doce na bolsa. A gente nunca sabe quando vai precisar.”
Voltei pra casa com saudades da minha avó. O prazer pode até morar no sofisticado, mas é no simples que mora o amor. E em Dona Geralda, ele mora em tempo integral.
Talvez o mundo esteja apressado demais para perceber. Mas ali, entre tantas árvores, fogão a lenha e café passado na hora, o tempo da memória aprendeu a morar. E mora bem.