Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Entre mim e você

12/08/2021 às 16:16.
Atualizado em 05/12/2021 às 05:40

Eu tenho tentado, acredito até que com muito afinco, entender os limites do outro. O interessante desse exercício é que ele é para a vida toda e, mais ainda, parte do entender a mim mesmo, antes de mais nada.

Refletir sobre o que eu quero, como eu sou, de verdade, sem só ter em mente a imagem que eu quero ser para os outros: essa é uma conversa minha comigo mesmo, e precisamos ser bem sinceros um com o outro senão vamos nos enganar a vida toda.

Marco Aurélio, imperador romano, deixou registrado em seus pensamentos: “para entender a verdadeira qualidade das pessoas, você deve olhar em suas mentes e examinar suas buscas e aversões”.

Em relação ao outro, não estou falando que devemos aceitar tudo que ele faz. De forma alguma. O grande problema é quando queremos que o outro seja “tal e qual” a mim, igualzinho ou bem próximo, sem reconhecer que ele não é e nunca o será.

E isso se reproduz em várias esferas: ao contratar um estagiário, queremos que ele seja tão bom estagiário quanto achamos que fomos; ao relacionar com as pessoas, queremos que elas ajam como nós mesmos faríamos. Dessa forma, vamos criando, na cabecinha da gente, expectativas imensas em quem ao menos pode ter ventilado sobre essas possibilidades: ou seja, muito daquilo que esperamos do outro é, senão, algo que nós mesmos criamos e não que ele tenha nos prometido.

Uma das coisas que aprendi é que opiniões e pontos de vista são aprendidos e que caráter não está à venda. Então, se o que o outro faz afeta o nosso caráter, conheçamos nosso limite. Ah, e cuidado: veja se isso se trata de caráter ou convicção moldada por cultura, que também é importante, mas é diferente uma coisa da outra.

A toalha molhada deixada pela casa me irrita tanto que faz com que o meu humor mude radicalmente? Mas, ao falar com alguém sobre isso – porque a gente sempre acha que é preciso falar, para que o outro perceba que te irrita – há a sua forma de ver e a maneira pela qual o outro percebe. Para simplificar: bom senso não é senso comum. 

Há coisas que realmente não dá para aceitar, por exemplo: aquelas pessoas que nos violentam, seja física ou psicologicamente. Quem apanha sabe a dor que isso tem e significa, porém, há a subjugação pelo outro, fazendo com que um ser se acredite inferior, dependente, que faça-o pensar que os outros não estão com ele e só essa pessoa, agressora, que não o abandonou. Isso é perverso e não é convicção cultural, não é falta de bom senso, é algo bem pior, inclusive tipificado como crime.

Ao pensar sobre tudo isso, há de se considerar o quanto não respeitamos o limite do outro. Eu detesto ligações telefônicas, se isso não impacta negativamente o caráter, aquilo que é moral para o outro, custa respeitar? Há outras formas de comunicação que podem muito bem resolver esse impasse. Lógico, esse é um exemplo banal, que, ao olhar do outro, pode parecer bobo, mas que faz total diferença para quem está do outro lado, um lugar que, no ponto de vista de quem olha, sempre parece confortável e inerte.

Lembro de uma vez, há décadas, quando implantei numa escola um prêmio de melhores alunos em cada disciplina, sendo sempre o quesito quantitativo que importava. Um aluno da extinta “sétima série” me disse: eu nunca tirei 100, mas você nunca observou que um aluno que em toda a vida tirou 90 é o que sempre ganha os prêmios e eu, que passei de 20 para 40, ainda sou tido como o pior de todos. 

Verdade: o lado de lá nem sempre é confortável como a gente pode imaginar. A luta daquele aluno não vai ser reconhecida jamais se o critério que eu avalio for a nota maior e não o tanto de esforço que ele dedicou para melhorar-se. Eu inclusive desprezei o 100% de avanço que ele teve, na nota mesmo.

Eu até poderia ter dito a ele: parabéns, faça as coisas sem esperar reconhecimento, faça por acreditar, que é a maneira que tenho como certa para a minha vida, hoje. Mas é a minha vida, e não a dele. Ele não sou eu.

Assim, uma fala atribuída ao Rebe de Kotz nos ajuda ainda mais nesse pensamento:

“Se eu sou eu porque você é você; e se você é você porque eu sou eu; então, eu não sou eu e você não é você.
Mas, se eu sou eu porque eu sou eu; e se você é você porque você é você, aí, podemos conversar, pois somos verdadeiros.”

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