Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Esta tal humanidade somos nós!

Publicado em 18/02/2022 às 06:00.

Um amigo havia falado de um historiador que escreveu sobre a humanidade com muito otimismo. Quando ele falou que o autor era historiador, já associei logo ao Yuval Harari, um professor israelense que é uma referência mundial, mas meu amigo disse não se lembrar do nome do tal professor, só afirmou que o livro trazia um olhar animador sobre a humanidade.

Já fiquei ansioso para descobrir quem era. Há anos ouvi uma palestra do psiquiatra José Ângelo Gaiarsa que falava - não desse jeito, mas foi assim que registrei mentalmente - que a maldade ganha destaque na mídia simplesmente por ser mais rara do que a bondade. A mídia fala daquilo que é incomum, pois o comum não chamaria atenção.

Fiquei muito pensativo sobre esta afirmação. Quando vejo algumas publicações de pessoas públicas, como o Padre Júlio Lancellotti, que desmascara alguns atos desumanos, acompanho os comentários de pessoas dizendo que “a humanidade está perdida”, “não demos certo como espécie”,  vou respondendo: “não! Olha a obra do padre, olha no seu bairro, quantas pessoas anônimas estão incansavelmente ajudando aos outros por acreditar que aquilo é o certo a ser feito. Veja o tanto de gente que está por aqui, seguindo o Instagram do padre justamente por não concordar com tais atrocidades”.

Mas, pelo que vejo, a opinião formada pela grande mídia e por redes sociais duvidosas é mais forte.

Foi então que busquei saber quem era o tal historiador que falava que a humanidade tem salvação. Rutger Bregman, um professor holandês que transforma em saga qualquer pesquisa que se propõe a fazer. Ele vai a fundo, busca dados científicos, fica dias nas bibliotecas “garimpando” os dados históricos, ouve as pessoas. Enfim, eu me apaixonei pela forma como ele escreve, pois apresenta os dados como correntemente os vemos e depois vai desconstruindo o imaginário coletivo para nos apresentar os fatos por trás do que nos foi apresentado como certo.

O livro que eu tive acesso foi “Humanidade: uma história otimista do homem”, escrito por Bregman e com indicação do Yuval Harari.

E não há estudo em que ele não busque, a fundo, sua comprovação e constatação. Até sobre um dos maiores horrores recentes que vivemos, o nazismo, ele trata em seus estudos para apresentar as suas ideias.

Uma parte do livro fala de uma notícia que sobrevive por anos, nascida em 1964 e tida como certa, que foi um assassinato de uma jovem nos EUA durante a madrugada e que, supostamente, 38 pessoas assistiram passivamente, das suas casas, sem acionarem a polícia. A difusão da responsabilidade, como chamaram também esse efeito espectador, não aconteceu bem assim. No apurar dos dados, houve solidariedade e a jovem não morreu sozinha, largada, mas nos braços de uma amiga, que chegou a tempo de abraçá-la.

Todas as pesquisas e histórias ressaltam um lado da humanidade que desconsideramos ou teimamos em não dar ênfase, talvez porque o nosso cérebro teima em registrar – ou valorar -  mais os fatos negativos que os positivos.

Fiquei pensando muito nisso ao ler o livro “Arrastados”, da jornalista Daniela Arbex, que também é daquelas profissionais que não se contenta com uma história superficial: ela vai antes do início de tudo, buscando deixar para os leitores um olhar mais amplo, mais sistêmico, ao passo que nos projeta para dentro da história de cada um daqueles personagens reais.

Foi a Daniela Arbex quem escreveu sobre a tragédia da boate Kiss, no livro “Todo dia a mesma noite” e sobre o Hospital Colônia de Barbacena, no primeiro livro de sua autoria que eu li: “Holocausto brasileiro”.

Em “Arrastados: os bastidores do rompimento da barragem de Brumadinho, o maior desastre humanitário do Brasil”, a história, tão real e próxima, comove, machuca, dói. A gente entra em Brumadinho com a Daniela e sente a presença de cada uma daquelas pessoas, que ao serem citadas pela autora, também estavam sendo homenageadas, imortalizadas.

Mas algo que foi me marcando muito no livro foi como que em cada momento, em cada relato, as pessoas se mostraram solidárias, inclusive frente a eminentes perigos, ajudando-se, doando-se para que a dor de familiares, de vítimas, da nação fosse amenizada.

O carinho da comunidade com os profissionais dos Corpo de Bombeiros, que estavam longe das suas residências e tiveram um acolhimento das moradoras da comunidade, que se prontificaram a lavar as roupas dos policiais, servi-los um café ou alimentos. Um dentista do médico legista do IML se ofereceu para doar um aparelho que ajudaria a fazer as identificações dos corpos mais rapidamente; um funcionário da Vale, que lotou o seu carro de pessoas que provavelmente seriam atingidas pela lama, levando-as para um lugar seguro e, não satisfeito, voltando para ajudar mais pessoas.

O impulso, se eu posso falar assim, de amor da secretária de assistência social da cidade, que voltou à sua casa para buscar sua cachorrinha e que, infelizmente, não deu conta de fugir do mar de lama a tempo. Dias depois ela foi encontrada abraçada ao seu animalzinho, ambos sem vida.

O livro merece a nossa leitura e reflexão, pois de uma história que ficará marcada em nossas vidas, extraímos ainda hoje exemplos de solidariedade, como os institutos que amigos e familiares das vítimas criaram para homenagear quem eles amam e ajudar quem mais necessita, numa continuidade da vida daqueles que partiram neste desastre.

A solidariedade. Foi ela quem salvou vidas nesta tragédia. E não foi um ou outro caso isolado, foram diversos, que ao serem relatados pela Daniela Arbex, nos conduzem a muitas reflexões.

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