Entrei num supermercado, fiz as minhas compras e fui pagar. Ao dar o “boa noite”, a funcionária olhou para o seu pequeno teclado, pegou os produtos e me falou algo como: “é cliente frequente?” Eu, no vácuo do cumprimento, falei que sim e a pessoa já foi no imperativo: “digita o CPF”.
Caminhei em direção ao outro lado do caixa, passando pela barreira de acrílico que nos separava e tentando entender o que nos aproxima. A pessoa que me atendia podia não estar num bom dia, como muitos que já vivi. Será que ela estava saturada de sorrir friamente para os clientes, embora deva ter sido orientada a ser ou se fazer de atenciosa? A simpatia profissional já a havia cansado ou eram outras questões que faziam a pessoa ficar tão fechada em si?
Seria a dor de ter deixado alguém doente em casa, o cansaço de ter que trabalhar exaustivamente ou ter que estar num lugar e num trabalho que não a agradam? Enfim, a respeitei, não insisti, mas me despedi, afinal, o problema é dela e “não meu”.
Outro dia, entrando num carro de um motorista de aplicativo, tive uma surpresa: ele me disse que preferia não conversar para evitar contaminação. Preferi, então, não perguntar sobre qual contaminação ele estava falando para que eu próprio não fosse contaminado. Saí do carro e agradeci.
Minha mãe dizia para que a gente não nos deixasse contaminar pelo “mau humor” dos outros, senão, perderíamos o dia.
Andando na rua, vi uma mãe de mãos dadas com uma criancinha que tinha um tênis que acendia ao tocar o chão. A criança era uma “espoleta”, não parava de bailar com o tênis. Eu, encantado em ver aquela cena de alegria do pequeno, perguntei à mãe: “as crianças gostam desse tênis, né? A bateria acaba rápido?” Ela segurou a mão do filho com mais força, olhou para mim e falou: “pergunte à Bibi” (marca da fabricante do tênis).
Assistindo à excelente série “O método Kominsky”, pode-se perceber uma cena em que o protagonista, professor de teatro e recém-idoso (deve ter pouco mais de 60 anos), fica sentando, sorrindo, olhando para crianças brincarem na praça ao passo que as mães, vendo aquela cena, acionam a polícia.
Será que estamos numa epidemia do medo? Da solidão com certeza que sim. Ou um leva ao outro?
Juan Antonio Roche Cárcel, presidente do Comitê de Sociologia das Emoções da Federação Espanhola de Sociologia (FES), numa entrevista ao jornal “El País”, afirma que a pandemia do coronavírus trouxe uma “tensão entre as forças individualizantes e comunitárias”. Há uma ambivalência reinante na sociedade em que percebemos que “existem aspectos de maior egoísmo individual e aspectos de maior sentido comunitário”.
Numa aula que lecionei meses atrás, citei Jiddu Krishnamurti, escritor e filósofo indiano, que disse que “não podemos nos acostumar a uma sociedade doente”. Um dos alunos disse que é exagero falar que estamos doentes, uma vez que não somos palco das maiores violências, hoje, se comparado com tudo que o mundo já viveu.
Entendendo violências como guerras ou conflitos armados, por mais que tenhamos hoje, historicamente a sociedade já viveu muitas barbáries. Mas acredito que o filósofo indiano não estava afirmando que estamos no pior momento, mas nos provocando para não nos acostumarmos a um adoecimento, seja bélico ou mental.
Insatisfação com o trabalho, falta de paciência com clientes e desconfianças sempre existiram, mas tudo isso se mescla a outros ingredientes que são mais destrutivos. Não seriam o medo e a solidão sintomas desse adoecimento silencioso?