Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Insubstituíveis

Publicado em 25/02/2022 às 06:00.

Foi bem pertinho do Natal, em dezembro de 2013, que uma amiga me convidou para dar uma palestra numa unidade prisional diferenciada, chamada Apac. Fui muito mais pela amizade a quem me convidou do que pelo entendimento do que poderia agregar a quem ali cumpre pena. Chegando, fomos recebidos calorosamente, fizemos a palestra, com a animada participação do ator Marcelo Ricco. 

Terminando a nossa apresentação, nos pediram para que pudéssemos ficar em pé, diante dos cem presos, para que eles pudessem fazer uma homenagem, agradecendo a nossa presença. Eis que todos, num só momento, ao comando de um deles, levantaram das suas cadeiras e começam a entoar uma música que eu jamais tinha ouvido: “irmão, você também é uma benção para mim”. Eu não entendia como eu poderia ser benção na vida de alguém, mas chorava com aquela cena tão vívida.

Saindo dali a minha mente não parava: fervia, borbulhava de perguntas, dúvidas, ideias. Foi desse dia em diante que não mais saí da atividade voluntária em unidades penais. Conheci, pouco depois, o Presídio de Bicas 2, na cidade de São Joaquim de Bicas-MG, na época em que abrigava mulheres em duas das suas dez alas.

Tinha aprendido, na Apac e em outras frentes voluntárias, que a conexão não deveria se dar de um professor para um preso. Aprendi, mais adiante, muito mais: não sou um “professor” que é recebido por “policiais penais” e “profissionais técnicos” para falar com “presos”. Não estou ali como um professor, onde também estão “padres” e “pastores”. Não dou palestra para os “pais” dos presos ou demais familiares que os visitam. E isso fez grande diferença no meu trabalho.

Eliminei todos os “Ps”, de professor a pastor, de policial penal a profissional técnico, de pais a presos. Na verdade, eu os concentrei em um só “P”, de “pessoas”, todos insubstituíveis na vida de alguém.

Ali dentro ouço histórias dos pastores sobre o seu trabalho em outras unidades e em outras ações, como com as famílias vulneráveis atingidas por chuvas ou que vivem pelas periferias da cidade. Converso com os policiais penais, têm alguns que foram meus alunos, e que me contam, assim que desenvolvem a confiança, algo que ninguém vê: sobre a mãe doente que lhes preocupa, o filho crescendo num mundo de tantas incertezas, a sua ausência do lar para trabalhar, o sonho de comprar um carro ou um terreno para construir uma casa ou de passar num concurso público.

Vejo os profissionais, técnicos nas áreas de assistência, falando sobre cursos que fizeram, sobre o acordar muito cedo para pegar um transporte para irem trabalhar, contando dos livros que leram, das férias que tiveram, também com muitas reservas, mas brilho nos olhos ao falarem dos seus filhos.

Ali eu ouço pais, que vieram visitar os seus filhos, levando no olhar grande dor, amparada por uma grande esperança. Choram pelos erros dos filhos, se culpando, às vezes, por não saberem onde podem ter errado ou se cobrando por não terem dado a educação ou orientação que o filho precisava.

Converso com os presos, não sobre crimes, pois raramente sei o que eles fizeram “lá fora”. Nosso foco não é vitimista, mas protagonista. Não sei o “artigo” que cada um infringiu, mas ouço sobre a dor de terem trocado a sua família pelas drogas ou dinheiro rápido. A vontade de ter uma nova oportunidade, as dúvidas em relação a conseguirem um emprego e se estabelecerem longe do crime, o arrependimento de não saberem ler e escrever, o medo de não conseguirem ver os filhos crescendo, de não conseguirem sustentá-los de uma maneira lícita. Falam da infância, da fome, da morte da mãe, da desilusão que deram à avó.

Hoje, vendo as forças de segurança mineiras se manifestarem nas ruas, não vejo policiais apenas, volto o olhar para as pessoas, muitos pais e mães que lutam pelo direito de darem o melhor aos seus filhos, mais do que a si próprios. 

Umas postagens em redes sociais diziam que “eles não querem trabalhar”, “só prestam para atrapalhar o trânsito” e que “a maioria é corrupta, pois eles que levam droga pra dentro das cadeias”. Talvez o termo “ignorância pluralística”, estudado pelo professor Dan Ariely, explique o fenômeno que ocorre quando muitas dessas pessoas, ouvindo opiniões de outras, não se manifestam contrariamente por acharem que a maioria pense daquela forma. O perigo disso é que ainda que condenemos internamente tais falas, calando-nos acabamos por acompanhar o fluxo.

Conheço muitos profissionais das forças de segurança, sei da dificuldade de trabalho de várias instituições dessa área, por isso não posso fazer coro com os que dizem que todos que ali estavam eram arruaceiros ou corruptos. Eu via ali profissionais, pessoas, lutando por seus direitos e por respeito. E acompanho, de longe, desde o Secretário de Justiça e Segurança Pública do Estado a entidades representativas, se desdobrando para fazerem com que a classe não seja ultrajada e desrespeitada.

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