Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Ninguém é solidário sozinho

Publicado em 09/12/2022 às 06:00.

No ano passado, às vésperas do Natal, o coordenador de um abrigo para pessoas em situação de rua do bairro 1º de Maio, em BH, me mandou uma mensagem pedindo um músico para tocar na noite do dia 24 de dezembro, como havíamos feito em 2019, ano em que a pandemia da Covid ainda não fazia parte da nossa realidade.

Em 2021 nós atravessávamos o segundo ano da pandemia e, ainda com muito receio, evitávamos aglomerações, o que fez com que a nossa tradicional festa neste abrigo fosse cancelada, visando preservar a saúde de todo mundo. Mas, mesmo assim, fiz contato com diversos músicos e um deles concordou em ir lá apresentar algumas canções para que aquela noite, tão especial para muita gente, pudesse ter um pouco mais de alegria.

Este abrigo recebe diariamente 200 pessoas em situação de rua, que chegam por volta das 16 horas e ficam aguardando para entrar às 17 horas, quando a porta se abre e eles vão guardar os seus pertences, pegar toalhas para o banho, jantar, dormir para que no dia seguinte tomem o café da manhã antes de irem para a rua novamente.

Dentre estas vagas, há 50 destinadas a mulheres e crianças. Foi lá que uma criança pediu para repetir a sobremesa, afirmando que era o melhor Natal da vida dela. Foi lá também, num outro ano, que entregamos refrigerantes e panetones para cada pessoa que entrava e uma criança chegou perto de mim e perguntou: “Tem brinquedo?”. Ele, os irmãos, o pai e a mãe eram de fora de Minas Gerais e aguardavam uma ajuda do município para voltarem para a cidade de origem. Naquele dia, por descuido, não havíamos levado brinquedos, só o kit de refrigerante e panetone.

Já neste ano de 2022, em setembro, Roberta Orzil, uma amiga do Grupo de Adoção de Santa Luzia, estava me pressionando para que eu fizesse contato com a coordenação do abrigo e pedisse a autorização para levarmos alguns kits de higiene, enfeites natalinos e a sobremesa do jantar. Logo no primeiro contato, o pessoal da instituição concordou prontamente.

O desafio seria, agora, conseguir recursos para comprar os itens de higiene do kit. Como muita gente prefere fazer a doação financeira a ter que ir pessoalmente comprar os produtos, montamos uma vaquinha virtual com a meta de R$ 7 mil, o suficiente para comprar uma bolsa para colocar os presentes, os itens de higiene e os refrigerantes do jantar. Em menos de um mês a meta foi batida. A franqueada de uma rede de sorveterias, que sempre nos ajuda, doará a sobremesa e um grupo de músicos já ensaia algumas canções para embalar a festa, sem esquecer das composições do Raul Seixas.

Foi aí que me ocorreu que poderíamos levar algo para o albergue Tia Branca, que é nosso parceiro há anos. Só que lá eles atendem 400 homens em situação de rua. Como arrecadar mais recursos para esta nova empreitada?

Num ímpeto, resolvi assumir este compromisso com o Tia Branca, albergue do bairro Floresta. Fiz um post nas redes sociais e mandei mensagem para alguns amigos. Eu não gosto de receber dinheiro, evito ao máximo e algumas pessoas, então, se prontificaram em coletar as doações que fossem aparecendo. Além do Gada Santa Luzia, veio somar ao grupo o coletivo Mães pela Liberdade e o Comida que Abraça.

Eis que um parceiro que sempre nos auxilia comprou e doou os 400 rolos de papel higiênico, o Minas pela Paz intermediou a doação de kits de higiene bucal, três atores mineiros se juntaram e doaram as barras de sabão, os alunos da Faculdade de Políticas Públicas e Gestão de Negócios da Uemg lançaram uma gincana para arrecadarem os sabonetes. E assim vão chegando os itens que precisamos.

Com tudo já bem encaminhado, faltava a embalagem para colocar os kits para entrega.

Em uma das minhas visitas às unidades prisionais, conversando com os indivíduos privados de liberdade, eles me falaram que conseguiriam fazer uma redinha, no formato de sacola com alça, utilizando apenas a embalagem do leite que eles recebem diariamente. Cada preso guardaria sua embalagem e, ao completarem 20 dias eles conseguiriam produzir esta espécie de sacola sem custo nenhum, já que a matéria-prima era algo que virava lixo todos os dias.

Pois não é que duas alas da unidade de Bicas 1 e outras quatro de Bicas 2 se comprometeram a fazer esta doação, simbólica, econômica e útil!

Lembrei muito do jornalista Gilberto Dimenstein, que me explicou o que era a generosidade: “é quando eu, tendo na minha mão uma vela acesa e você, tendo em sua mão uma vela apagada, acendo a sua vela com a minha e nós dois ganhamos luz”. O termo solidariedade vem do latim, significa “sólido e consistente”. No francês há o termo solidarité, que remete a uma responsabilidade recíproca.

Gosto muito de uma fala do Confúcio, em que uma pessoa tem uma laranja e troca com outra, que também tem uma laranja, ficando com apenas uma laranja cada uma. Mas se você tem uma ideia e troca com quem tem outra ideia, ambos saem com duas ideias.

Ninguém faz nada sozinho. Para ser solidário é preciso que haja o outro.

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