Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

O come quieto pode nos abocanhar

Publicado em 24/02/2023 às 06:00.

Uma pessoa de São Paulo, que passou o carnaval em Belo Horizonte, me contou entusiasmada que “todo mundo ama os mineiros”. Quando ouço isso, já inflo de alegria, como se o elogio fosse para mim. E, de certa forma, acaba sendo, sim.

“As pessoas, os lugares, a comida. Minas e seus encantos”, disse a sua amiga, que também esteve em BH para o carnaval, mas que frequenta o estado sempre que pode.

Algumas belezas que temos em Minas são conhecidas mundo afora. Não vou me alongar com os exemplos, pois são inúmeros, mas em Santa Luzia duas irmãs doceiras faziam, em sua casa, uma bala delícia e uns canudinhos de doce de leite que, diz a lenda, eram os prediletos da Princesa Diana, que os recebia através de uma embaixatriz mineira que era sua amiga.

Assim como os doces, há tanta riqueza nos diversos cantos de Minas.

Temos os nossos problemas, com certeza. Mas, quem não os tem? Só que vejo, e isso é de muito tempo, que o maior problema é com a gente mesmo. Calma que eu explico: um amigo disse pelo fato de as grandes emissoras de televisão estarem no eixo Rio-São Paulo, isto acaba concentrando a visibilidade nesses estados, fortalecendo-os.

Este é um fato, que pode ser somado a tantos outros e que nos fazem ter uma estima baixa sobre aquilo que fazemos muito bem. Outros são: ter menor exposição dificulta o acesso a importantes talentos, projetos, trabalhos e pesquisas realizadas por aqui; alimentar a síndrome do vira-lata, de que os outros seriam melhores do que nós; focar na síndrome do estrangeiro, que considera que “santo de casa não faz milagres” e prefere, pagando mais, contratar gente que vem de fora.

Não! Não nos tornemos uma ilha, que rejeita o que vem de fora e insiste em olhar só para o centro de si mesma. De forma alguma. O que é incompreensível é ser valorizado mais fora do que dentro do próprio estado.

Temos talentos em diversas áreas, pessoas que dão uma imensa colaboração e têm muito significado nas áreas do design, da comunicação, música, esportes, artes plásticas e visuais, teatro, dança, gastronomia e moda. Temos pesquisas importantes sendo realizadas nas nossas universidades, educadores exemplares, talentos na arquitetura, na gestão, no voluntariado, no grafite e no stand-up.

Temos muita gente excepcional na área da saúde, na gestão pública, na psicologia, no direito e em tantas outras áreas. São pessoas que conhecem do que fazem, estudam, pesquisam, experimentam, praticam, buscam novas referências.

Um dia dei uma palestra numa multinacional instalada em São Paulo. Os chefes de vários setores da organização eram mineiros, que amam Minas e se enchem de orgulho ao contar as nossas belezas e riquezas.

É este orgulho que nos pertence, que tem que nos unir. Temos que conhecer mais os nossos talentos, descobrir quem são as pessoas que estão fazendo e acontecendo nas artes, nos negócios, na educação, na prestação de serviços, na comunicação, nos esportes e por aí vai.

Temos que ouvir e dar mais voz a estas pessoas, incentivá-las. Mas temos também que parar de achar que o que a gente faz não é tão grandioso ou com tanta habilidade quanto o que vem de fora.

Nossos bombeiros estão ajudando a salvar vidas lá na Turquia; Adélia Prado, uma poetisa de referência mundial, vive em Divinópolis; um profissional da área do Design que compõe os mais famosos juris de criatividade no mundo é mineiro; um dos candidatos ao Oscar deste ano é naturalizado mineiro, sendo que sua mãe vive ainda na capital.

Milton Nascimento é mineiro de alma. Mineiros também são Conceição Evaristo e Ailton Krenak. Fazendo coro com eles, muitos “anônimos” entregam o melhor do seu trabalho todos os dias, facilitando as nossas vidas com sua arte, serviço, ciência e por aí vai.

Então, aqui fica a questão, que inclusive se assemelha à fala do imperador romano Júlio César, quando pediu que investigasse a sua esposa para saber se ela era adúltera. Tendo confirmada a sua honestidade, César nos ensinou: não basta à mulher de César ser honesta. Ela também tem que parecer honesta.

Entregarmos o que temos de melhor já é ótimo. Mas o mundo ganharia mais a partir do momento em que descobrisse tantos outros talentos que precisam de incentivo, de oportunidade, de um palco, de uns segundos na mídia, de uma bolsa de estudos.

Ganharíamos todos se valorizássemos mais o nosso povo e o seu talento, apoiando, divulgando, consumindo, lendo, contratando, exportando, elogiando o que temos de bom. Isto não é bairrismo e não nos impede de ter acesso ao que outros estados e países têm a nos oferecer. Mas, com certeza, nos fortalece para que a gente se perceba “competitivo” e se posicione com mais vigor.

A infame cultura do “come quieto” pode nos abocanhar.

© Copyright 2024Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por
Distribuido por