Em uma palestra para empreendedores, numa cidade da Grande BH, fui falar sobre educação pensada para além das salas de aula das escolas. Para falar sobre este assunto, costumo usar um exemplo simbólico: a história de Nárnia. Na obra, adolescentes passam várias vezes diante de um guarda-roupas sem nunca se interessarem em entrar. Só quando são obrigados a se esconder ali, por conta de um incidente, descobrem que, por trás das roupas penduradas, há um mundo completamente novo — um universo que jamais imaginaram existir.
Passamos por muitos “guarda-roupas de Nárnia” no nosso cotidiano. Mas quase nunca ousamos abri-los. Podemos conhecer, de forma superficial, a realidade de meninos que vivem em casas de acolhimento, pessoas em situação de rua, idosos em lares de longa permanência, mulheres vítimas de violência doméstica, famílias que vêm do interior para realizarem o tratamento de alguma doença complexa nos hospitais da capital. Quando não pertencemos a esses grupos, temos uma falsa sensação de que os compreendemos, mas não fazemos ideia de como chegaram até ali, o que sentem, o que sonham ou como enxergam o próprio futuro.
Essa superficialidade é o terreno fértil onde o preconceito se instala. E o preconceito, muitas vezes, nada mais é do que a ignorância — o desconhecimento de temas sobre os quais nos atrevemos a emitir juízo. Claro, o preconceito também pode vir carregado de malícia, má-fé ou de construções culturais que distorcem nosso olhar.
Gosto muito da definição de empatia do criador do Psicodrama, Jacob Levi Moreno. Ele dizia que, ao me colocar diante de alguém, se eu tirasse um dos olhos dessa pessoa e o colocasse no lugar do meu, passaria a vê-la com os olhos dela, e não com os meus. Isso é poderoso. Vai muito além do uso popular da palavra empatia.
Durante a palestra, confessei aos empreendedores que era difícil para mim compreender o que é a fome. Eu nunca senti fome de verdade — no máximo, um apetite. E por mais que eu me esforce em imaginar, não sei o que sente uma mãe atípica, o que é dormir na rua, com ou sem o uso de drogas, o que leva alguém até aquele ponto. Sem viver aquilo, a minha ideia do sofrimento do outro é sempre uma aproximação imperfeita.
A palestra terminou. Recebi alguns abraços, fui convidado a tomar café mais uma vez, embora já o tivesse feito ao chegar. A comida era boa, o ambiente acolhedor e, como bom mineiro, não recusei.
Sentei-me sozinho, esperando que os coordenadores providenciassem um carro para me levar. Foi então que uma mulher se aproximou. Mais velha, olhar cansado, voz sem muito destaque, trazia nos olhos uma dor profunda. Perguntou se, nos meus trabalhos com pessoas em situação de rua, eu havia visto um jovem pardo, magro, barbudo, com cabelos longos, chamado Davi. Respondi que o perfil era comum e que eu não conseguia dizer ao certo, pois são muitas pessoas e eu não sei o nome de todos. Apenas alguns, com quem a troca era mais possível, acabavam dividindo um pouco da sua história.
Ela então me contou: o filho se envolveu com drogas e foi parar na rua. Havia sido visto pela última vez meses antes, descalço, irreconhecível — não apenas no aspecto físico, mas em tudo: no comportamento, no olhar, na fala, no descompasso e desequilíbrio.
Ela não conta nada aos outros filhos. Já ouviu deles que não deveria recebê-lo mais. Ela mesma, em momentos de desespero, prometeu a si que não abriria mais a porta. Mas então me perguntou, com os olhos sem brilho: “Você sabe o que sente uma mãe que vive o luto pelo filho vivo?”
Não. Não sei.
Ela me disse que queria, ao menos, que ele dormisse em um abrigo. Que não ficasse na rua. E então deixou escapar uma dúvida cruel: “Não consigo entender onde errei. Se amei demais, se mimei demais, se fui de menos. Se deveria ter estado mais presente.”
Chorou. Um choro contido, daqueles que saem envergonhados, mas que sabem que precisam jorrar. Eu disse que ela não devia carregar essa culpa. Saber de um filho nessa condição já é mutilador. Ver é insuportável. E viver com a esperança reacesa cada vez que ele aparece, para depois vê-la morrer de novo quando ele vai embora levando algo, movido pela dependência, é devastador.
O carro chegou. Os coordenadores aguardavam do lado de fora, respeitando o momento. A mulher respirou fundo. Abraçou-me. Os olhos descansaram um pouco, mas seguiram pesados rumo à cadeira vazia no auditório.
Fiquei ali, por alguns segundos, sentindo o eco daquela dor. Um guarda-roupas de Nárnia havia sido escancarado diante de mim. E, mais uma vez, fui lembrado de que há mundos inteiros por trás de cada pessoa - e que empatia não é se colocar no lugar do outro, mas permitir que outro exista no seu próprio lugar, com toda a dignidade e respeito.