Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

O último dia da minha vida

Publicado em 01/11/2024 às 06:00.

Um ator mirim, que esteve virtualmente presente na minha infância, foi encontrado morto em um distrito turístico de Porto Seguro, no dia 24 de outubro. O dia do sepultamento coincidiu com o aniversário de cinco anos da morte de seu tio, o também ator e diretor de TV Jorge Fernando. A mãe do jovem publicou em uma rede social: “Hoje se instalou a tristeza eterna no meu coração. Hoje faz cinco anos que meu irmão morreu, e hoje vou sepultar meu filho! O que aconteceu? O sorriso da família de repente virou pranto! A vida está me destruindo de quando em quando… meu filho foi ao mercado e foi confundido por dois bandidos!”.

Um dia antes, em 23 de outubro, um poeta e filósofo brasileiro morreu na Suíça, nos braços do marido, por meio de uma morte assistida. Ele enfrentava um quadro de demência que já vinha lhe roubando parte da memória e alguns prazeres, como a leitura, que ele já não conseguia mais realizar. Consciente de sua escolha, despediu-se dos amigos e buscou orientação médica naquele país para cumprir o que havia decidido.

A mãe de um querido amigo morreu na madrugada de segunda-feira, 28 de outubro. Fiquei sabendo assim que ele postou em uma rede social uma foto dela jovem e outra recente, já idosa, linda, com o rosto sereno, que dava vontade de abraçar e encher de carinho. Embaixo, ele escreveu apenas: “Tchau, mãe.”

Esses três acontecimentos têm uma conexão comigo: o rosto do ator mirim faz parte da minha memória infantil; o poeta escreveu, e tantas vozes que admiro cantaram várias músicas que ainda me ensinam bastante; e esse amigo, que foi colunista do “Hoje em Dia”, um jornalista brilhante e crítico de artes com um olhar que poucos possuem, se despediu de sua mãe, a quem eu não conhecia pessoalmente, mas cujas histórias afetivas ouvi várias vezes.

Ele era um filho dedicado que, por mais de 15 anos, ajustou sua rotina para ficar próximo da mãe, cuidando para que ela tivesse uma velhice digna e afetuosa. Quando o convidávamos para alguma festa ou lançamento de livro, ele recusava, pois seguia uma rotina rígida: acordava, preparava o café, ia ao quarto da mãe, abria as janelas, ajudava-a a se levantar, dava banho, vestia, servia o café, e assim seguia o dia.

Ele contou, em uma rara publicação sobre o assunto nas redes sociais, sobre os dias em que ela se sentava no alpendre de sua casa, de frente para uma das avenidas mais movimentadas do bairro Floresta, acenando para as pessoas que passavam. Só depois me veio à mente o significado do “Tchau, mãe” como uma homenagem a esse hábito que ela desenvolveu de saudar as pessoas. Ela recebia carinho em troca: pessoas atravessavam a rua para conversar, traziam flores, presentes, reconhecendo que um gesto tão amável, vindo de uma desconhecida, merecia ser constante em nossas relações.

Um dia, Luiz Hippert, o amigo de quem falo, me enviou um vídeo de sua mãe tecendo tapetes sustentáveis com tiras de sacolas plásticas de supermercado. Pedi autorização para levar o vídeo a algumas unidades prisionais, pois ela era didática ao ensinar, e eu queria transformar sacolas descartadas em pequenos presentes e mimos, como os que ela fazia.

No ônibus, voltando de uma viagem, essas três histórias se misturavam em minha mente e me inquietavam: é inevitável; um dia estarei me despedindo de pessoas que amo, chorando sua perda, sem a possibilidade de novamente poder conversar, ouvir conselhos, abraçar, sorrir, ser confortado ou confrontado. Um dia, alguém também sentirá minha ausência física, com a minha morte.

Comentei isso com uma amiga, que me repreendeu, dizendo que “morte” é um termo muito forte e que eu deveria usar “falecimento”, “partida” ou similares, para tornar o tema mais aceitável. É curioso como não somos preparados para falar sobre isso, e como muitas pessoas, mesmo prestes a morrer, sofrem porque familiares e amigos não admitem ou conversam sobre o assunto. A pessoa nem tem o direito de se despedir, o que deve ser doloroso, como relatou uma amiga que ouviu isso de alguém próximo com doença terminal.

Alguns dizem: “Enquanto houver esperança, não falamos sobre isso;” outros dizem: “Esse é um assunto que pertence a Deus, não a nós.”

Esse turbilhão de pensamentos me trouxe uma ansiedade, ainda mais por não ter conseguido abraçar meu amigo no velório de sua mãe. À noite, saí para minha caminhada, ainda com um aperto no peito, refletindo sobre o fato de que um dia, sem aviso prévio, será meu último dia. A morte não me assombra, mas a ausência abrupta, o “deixar de existir”, me assusta. Enquanto eu passava pela esquina de uma delegacia da Polícia Civil, pouco antes do Fórum de BH, na Avenida Augusto de Lima, um homem se aproximava, com roupas sujas e rasgadas, segurando um caderno ou algo parecido em uma das mãos, com os pés e cabelos cobertos de sujeira acumulada, resmungando algo enquanto fazia pequenos gestos. Ele falava sozinho, e, devido à distância, eu não conseguia compreender. Ao passar por mim, sem me olhar e “sem me ver”, ele dizia para o universo: “A morte também trabalha ao contrário”.

Sou um colecionador de frases e situações assim. Cada uma delas me impacta profundamente. Em algumas, tenho testemunhas, como o Fabrício, meu dentista; em outras, fico sozinho, refletindo se aquilo tem um sentido para além de uma simples coincidência.

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