Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Observe os detalhes

Publicado em 13/01/2023 às 06:00.

Depois de um dia de muita leitura eu precisava sair de casa para que as ideias pudessem ir se assentando em minha mente e os neurônios conseguissem promover novos encontros entre si.

Sempre que caminho, novas ideias vão surgindo, mas há também um problema aí: quando eu não vou andando e ouvindo uma música, para relaxar e desconectar, eu estou pensativo sobre alguma questão ou problema que precisa de uma resposta rápida, o que me deixa envolto em reflexões. O problema disso é que muitas vezes eu deixo minhas antenas perceptivas desligadas, deixando passar tanta coisa interessante que tem pelo caminho. E já vale dizer que hoje, bem diferente de um passado não tão distante, me cuido para que eu não me cobre excessivamente de ser “produtivo” o tempo todo.

Aqui vale uma ressalva: é desgastante tirar um dia para não fazer nada e se sentir culpado por isso.

Mas, voltando à caminhada, como eu estava em São Paulo, resolvi subir a Rua da Consolação, chegar até a Avenida Paulista e descer a Rua Augusta, com um “foninho” apenas em um ouvido, percebendo os cenários que se desenhavam à minha frente.

Uma senhora idosa caminhava com uma bengala, sendo orientada por aqueles pisos táteis que ficam nas calçadas e servem de direção e alerta. Esta senhora cega fluía tranquilamente por aquele caminho, mas seria surpreendida por um buraco na calçada que de maneira abrupta interromperia parte da sua comunicação com o externo, lançando-a numa pequena vala.

Um homem na porta de uma lanchonete, vendo a senhora vir em direção ao buraco, que provavelmente ela o descobriria por conta própria, resolveu sair de onde estava e ir ao seu auxílio. Ela aceitou a ajuda e os dois caminharam juntos por um trecho.

Lá na frente uma outra senhora varria o lixo jogado pelas pessoas. Um homem passa, com um chocolate sendo aberto, devora-o em segundos e lança a embalagem ao chão, ignorando a civilidade e aquela senhora que limpava a calçada. Ela, resignada, leva sua vassoura até aquele papel amarelo-brilhante e junta-o aos demais rejeitos.

Virando a rua, já na Paulista, pessoas em situação de rua pedem auxílio para pessoas que passam e nem os veem, como se da paisagem eles fizessem parte. Um senhor, enrolado em um lençol, sentado numa calçada que tem uma igreja, um banco e um supermercado em sua frente, recebe de uma moça uma garrafinha com água, no que ele abre imediatamente e toma com sede. Muitos moradores de rua não têm acesso a água potável. Nem a água qualquer.

Entro numa loja para comprar bala Halls, esta marca criada há quase cem anos no Reino Unido e que nos EUA não é considerada como bala, mas como uma espécie de pastilha para garganta. Pego cinco unidades e vou ao caixa. Pago seis reais e setenta e cinco centavos, dispenso a sacola e o funcionário me presenteia com um chocolate e um cartãozinho de ano novo.

Desço a Rua Augusta, agora com os dois fones no ouvido, mais ligado à música do que ao ambiente em si. Quase chegando ao Parque Augusta, que seria minha última parada antes do destino derradeiro, uma senhora fala algo comigo. Ela de máscara, eu de fone nos ouvidos, volto e pergunto o que ela havia dito.

- Quer comprar uma caneta para me ajudar?

Expliquei que tinha saído para caminhar e nem celular tinha levado e ela, alegre, me respondeu: “educação é tudo, vai com Deus, viu?”.

Foi dali que eu saí pensando nesses tais pequenos gestos, que passam despercebidos muitas das vezes, mas que fazem tão bem – ou tão mal - a quem os pratica e a quem os recebe.

Marcel Cohen, escritor francês, num artigo da Revista Piauí cita o dito segundo o qual “o diabo está nos detalhes”, bem como seu contrário, “Deus está nos detalhes”. Cohen explica que “o primeiro é atribuído a Nietzsche, o segundo é uma interpretação da Parasha Mishpatim, uma das 54 seções da Bíblia hebraica, que cada ano são lidas na íntegra nas sinagogas. Segundo a leitura rabínica, a perfeição e a retidão dependem de todos os detalhes, inclusive dos mais modestos”. Por ter citado com frequência, acabam por atribuir ao arquiteto Mies van der Rohe a autoria do segundo dito que se popularizou.

Lembro com alguma clareza de uma entrevista do humorista Chico Anísio. Quando perguntado como criava tantos personagens, ele respondeu que simplesmente observa as pessoas, num exercício quase antropológico de ficar parado na rua olhando os diversos tipos que passavam por ele.

Minha amiga Lígia Fascioni aguçou seu olhar sobre as cidades, ao andar com sua câmera registrando coisas que corriqueiramente ninguém vê. Um dia perguntei a ela onde conseguia tantos cenários lindos e ela me respondeu: estas fotos são da sua rua. Lígia não mora em Minas, por isso também não em o olhar viciado. Ou por prática, por hábito, quem sabe.

Ao transformar em fotos aquilo que poucos veem, Lígia nos faz perceber a riqueza na qual estamos mergulhados diariamente, fruto da arquitetura, dos cenários, das histórias e das pessoas que estão ali, aguardando um olhar. Talvez um novo olhar.

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