Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Outros caminhos

14/05/2020 às 19:36.
Atualizado em 27/10/2021 às 03:30

Em julho do ano passado eu fui levado a ficar cinco dias em um hospital, com suspeita de hepatite e com a necessidade de tomar soro e esperar o resultado para saber se era realmente esse o diagnóstico.

Preso ao soro 24h, quase um “marinheiro de primeira viagem” em uma internação compulsória, desligava o celular e a internet para não ter que responder, imediatamente, às mesmas perguntas gentis de pessoas diferentes.

Ao ligar o wi-fi, as mensagens foram descarregadas numa sequência de estalos. Mas a mais recente era de um ex-aluno que trabalha no Centro POP, de atenção à população de rua, e que estava, naquele momento, atendendo a um homem que sonhava em ser locutor.
Impressionado com o timbre da voz e com a aspiração desse seu jovem assistido, meu ex-aluno imediatamente gravou e enviou uma mensagem do rapaz, seguida de um apelo para que conseguisse um curso de locução para este sonhador.

O rapaz vivia na rua, utilizava o Centro POP para fazer cursos e lavar roupas durante o dia. A noite ele passavo no albergue Tia Branca, que recebe diariamente 400 homens que vivem nas ruas da capital e ali têm banho, jantar, espaço coletivo para dormir e café da manhã.

Assim que li a mensagem, fiz contato com um amigo, gestor da mais tradicional e conceituada escola de locutores de Belo Horizonte, que prontamente me explicou que as turmas estavam em andamento, mas ele mesmo daria essas aulas para o rapaz, para ele não ficar esperando.
Passados alguns meses eu comunico à coordenação do Tia Branca que iria a noite visitar as voluntárias que dão aulas de artesanato para uma turma que utiliza o albergue. Quando eu chego lá me apresentam o locutor, que ficou esperando a minha chegada para agradecer o que havia feito por ele e dedicar o certificado a mim. Ele não ficaria lá porque o professor de locução conseguiu, pelo intermédio da sua esposa, um emprego para ele numa empresa em Contagem e, por isso, ele conseguiu alugar um barraco para morar. Perguntei se ele estava gostando e a resposta foi um belo sorriso, só se queixando dos pernilongos. Eu disse a ele para comprar um inseticida e ele disse que sim, no mês que vem, quando recebesse o próximo salário.

Quando ele se foi, eu comente com a voluntária que lá estava que havia ficado muito feliz com esse reconhecimento, apesar que nessa história quem merece o certificado é o próprio aluno e os agradecimentos deveriam ir ao professor. Lembro da fala da voluntária: “vocês deram a ele a possibilidade de dignidade, que muitas vezes é perdida ou tirada deles”.

Essa semana recebi uma mensagem de uma amiga que atua no projeto Banho de Amor, perguntando se eu não poderia ajudar um rapaz que eles acompanham, que tinha um emprego na cidade de Contagem e foi demitido frente ao temor dessa pandemia. E me mandou o áudio de conclusão de curso dele, que havia estudado locução. Era aquele jovem sonhador.

Ele não é o único nessa situação. 

Diariamente diversos homens, mulheres e crianças enfrentam filas para entrarem no albergue, correm o risco de não conseguir uma vaga em determinado dia, dividem o quarto com desconhecidos ou dormem nas ruas, perto de uma agência bancária ou debaixo de câmeras para evitarem alguma violência. Todos têm nome, história e muitos ainda têm sonhos e esperanças.

Voltar às ruas é uma opção para esse rapaz cuja pequena parte da história conhecemos hoje. Mas ele tem buscado outros caminhos.

  

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