Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Para que a infância nos salve, salvemos a infância!

Publicado em 15/09/2023 às 06:00.

Eu passei o dia todo entregando cadernos e canetas que o Conselho da Comunidade da Comarca de Igarapé gentilmente cedeu para que a gente pudesse dar continuidade aos projetos sociais e educativos não-escolares no sistema de penitenciário. Passei em três alas, expliquei o funcionamento da atividade, coletei a assinatura de quem gostaria de participar e entreguei o material, que fica com eles em cela por até três meses, prazo máximo para a devolução, mas que eu vou acompanhando periodicamente o desenvolvimento.

O que me alegra é que quase todos optam por participar dos projetos. São muitas as atividades. Temos o projeto “Quarto de despejo”, que é uma homenagem à catadora de recicláveis e escritora Carolina Maria de Jesus, onde os participantes expõem sua história de vida, falando sobre infância, adolescência. Abordam como o crime os encontrou ou como eles encontraram o crime, sem necessariamente falar os fatos, mas narrando a sua trajetória até chegar ao cárcere.

Logo de manhã, quando embarquei no ônibus para São Joaquim de Bicas, fui lendo alguns desses cadernos. Um dos autores conta que aquela atividade serve para pensar e repensar muitas coisas que aconteceram em sua vida, aprendendo com a sua própria história, pois o projeto permite voltar ao passado, jogar luz sobre algumas situações e entendê-las com mais serenidade. “É uma forma de evoluir a nossa mente”, afirma.

Estas histórias me ajudam a identificar gargalos sociais. A cada caderno entregue, um mundo se descortina para mim. Quero muito, com tudo que estou aprendendo, ajudar numa reflexão a respeito de malhas tão importantes que envolvem qualquer indivíduo: a família, a escola, a sociedade (trabalho, igreja, grupos sociais). Esta ordem é mais didática do que prática, mas os relatos lidos me dão caminhos para entender forças e fraquezas em cada uma dessas esferas.

Ainda a caminho da cidade de São Joaquim de Bicas, leio alguns trabalhos do projeto Nise, uma homenagem à psiquiatra alagoana Nise da Silveira, que afirmava: “Eu não acredito em cura pela violência”, referindo-se aos seus pacientes psiquiátricos. Nesta atividade, os custodiados se expressam por poesia, música, desenhos, redação e através da resposta a várias questões sobre o papel das prisões, como sair do crime, como evitar que alguém entre, o que é o mau e o que é preciso para mudar a si próprio.

A resposta a estas indagações me fazem entender uma fala de dois grandes autores: Saramago, que diz que “é preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós”. As questões do “Nise” provocam isso em quem participa do projeto, mas, ainda mais, me dão esta imensa possibilidade de sair da ilha que vivo, e que de certa forma domino, para conhecer outras ilhas.

E o segundo autor é o C. S. Lewis, que num livro sobre o sistema de educação do Reino Unido, diz: “Cabe ao educador não derrubar florestas, mas irrigar desertos”. Derrubar tudo que se tem como valores para fazer um novo plantio é muito difícil. Mas, diante de todos nós, há o árido deserto, que se apresenta como uma outra possibilidade. A floresta é densa, como muitas mentes. O deserto é um convite interessante. E nessa hora não tem como não lembrar das analogias com o deserto de quem viveu e sobreviveu a ele: Antoine de Saint-Exupéry, o autor de O Pequeno Príncipe, Terra dos homens e Plano de voo.

Tem também o projeto Antonieta de Barros, que foi uma política e professora que instituiu a data do dia dos professores, mas que fez muito mais pela educação. Nesta atividade, uma reflexão para que os custodiados voltem seu olhar para a escola, especificamente, e relatem suas lembranças deste ambiente e sua relação com a educação. Ao assistir as séries “Segunda chamada” e “O massacre na escola”, obras que nos ensinam demasiadamente, percebi a importância de levar este assunto para ser tratado também no cárcere. E os apontamentos que vêm dos participantes são riquíssimos.

Todos os custodiados sabem que os seus relatos devem ser mais verdadeiros e reais possíveis, porque é a partir deles que tenho tentado construir caminhos para entendimentos de questões básicas sobre família, escola e sociedade.

Neste mesmo dia eu saí mais cedo da unidade prisional e sentei-me no meio-fio, esperando o horário do ônibus de volta a BH. Estava a alguns metros da entrada principal daquela unidade prisional, que é uma área de segurança, por isso há pouco trânsito de pessoas e carros. Descendo a rua em direção à portaria, passando diante de mim, três meninos bem pequenos, amigos, caminhavam com convicção em direção aos policiais penais.

A enfermeira da unidade, que saía pela portaria, perguntou para eles: “O que os três estão fazendo indo em direção à cadeia?” E eles responderam, sem titubear: “A gente veio pegar aqueles cavalos ali” e apontaram para dois animais que pastavam ali à frente. A enfermeira insistiu: “mas os cavalos estão lá trás, o que vocês estão fazendo na direção da porta de uma cadeia?”, no que eles responderam: “A gente veio brincar. Vamos pedir a ajuda dos policiais pra gente montar”. Os demais funcionários que começavam a sair riram daquela inocência infantil, que tinham o firme propósito de uma feliz brincadeira.

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