Há algumas semanas tenho acompanhado, no Threads, a rede irmã do Instagram, pessoas que vêm visitar Belo Horizonte e saem reclamando de diversas situações: trânsito caótico, sujeira nas ruas, ausência de beleza na cidade, excesso de pessoas em situação de rua.
Os comentários nessas postagens se dividem. Alguns turistas e até mineiros concordam com as críticas; outros, nascidos ou criados em Minas, defendem a cidade com argumentos mais amenos, como: “a pessoa não foi aos lugares certos” ou “visão limitada de quem passa voando pela cidade”. Há também os mais calorosos, que disparam: “se não gostou, não volta”.
Ainda estou construindo esta matéria, pois exige pesquisa e compreensão das responsabilizações. Quero entender melhor as queixas sobre praças precisando de mais cuidados, calçadas intransitáveis, falta de educação no manejo do lixo, que acaba sendo descartado inadvertidamente. Muitos justificam a atitude alegando que não há lixeiras por perto. Em alguns casos, isso é verdade; em outros, trata-se de descuido ou até vandalismo, quando as lixeiras são destruídas. E as reformas dos espaços públicos têm nos dado orgulho?
Neste texto, não entrarei em questões sensíveis como segurança, saúde e educação. Meu olhar será mais de “drone”, mas buscando se aproximar das reclamações que vejo multiplicarem sob a ótica de quem apenas nos visita.
Uma dessas reclamações é o crescimento da população em situação de rua. Não sei de onde vêm todos os que criticam, e não digo que estejam errados, mas trago uma comparação. Voltei de São Paulo, destino que frequento quinzenalmente, e atesto que lá o fenômeno também é intenso e não é novo. Sim, São Paulo é o lugar para onde convergem sonhos de brasileiros de quase todo o país, mas o crescimento da população de rua atinge praticamente todas as grandes cidades e capitais.
Há muito tempo, instituições sérias se debruçam sobre esse movimento migratório que leva tantas pessoas para as ruas. É importante destacar o trabalho da Pastoral do Povo de Rua, do Movimento Nacional da População de Rua e do Centro Estadual de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Materiais Recicláveis (CEDDH MG). Essa última entidade atua na defesa e promoção dos direitos humanos, com foco no protagonismo das pessoas em situação de rua e dos catadores de recicláveis.
O CEDDH MG conta com apoio institucional de órgãos governamentais e poderes constituídos, assim como a Defensoria e o Ministério Público e o Tribunal de Justiça, mas não é um órgão do governo. Também mantém parcerias com universidades como PUC Minas e UFMG. Nesta semana, durante um seminário, apresentou um diagnóstico participativo com a população de rua (atente-se que foi com e não da população de rua). O levantamento trouxe um aprofundamento riquíssimo das questões vividas por quem está nas ruas de Belo Horizonte, Governador Valadares, Montes Claros e Uberlândia.
Entre os principais problemas relatados, em ordem de incidência, estão: violência e violações de direitos (170 menções), dificuldades diversas (111), preconceito e desrespeito (78), moradia (39), emprego e renda (24), assistência e apoio (20), dependência química (18) e conflitos internos (12).
Jorge, o apresentador do diagnóstico, conduziu a fala com maestria. Ele próprio já viveu nas ruas, após um período de depressão, e sabia na alma o que estava relatando.
Ao sair do seminário, recebi de uma amiga, bastante envolvida nessa causa, a notícia publicada pelo jornal O Tempo: “Projeto de lei que pode retirar pertences de pessoas em situação de rua avança na Câmara”. A reportagem informava que a proposta visa desobstruir vias e passeios públicos, mas a oposição denuncia que o texto é, na prática, uma tentativa de arrancar os poucos bens pessoais de quem vive nas ruas. Minha amiga me escreveu angustiada, perguntando: “como alguém pode deliberar ferrar quem já não está bem de jeito nenhum?”.
Porém, fico pensando. Ao tratar um assunto tão sério, será que conseguimos trazer à tona o que há de mais humano dentro de nós? Podemos mudar o olhar e, em vez de pensar apenas em “tirar da minha calçada”, tentar entender a história que levou alguém a estar ali? É possível refletir sobre situações como: nos abrigos, não se pode entrar com animais de estimação. Se o morador de rua tem um cachorro, muitas vezes seu único amigo, ele precisa deixá-lo para trás. Entre ir para um abrigo e deixar um filho de fora, ou permanecer com ele na rua, o que você escolheria? É por isso que o amor pelos animais de estimação permite essa comparação válida, tanto para pobres quanto para ricos.
Ou ainda: imagine que alguém diga a você que todos os seus pertences devem caber em um saco plástico ou em uma mochila, e que aquilo que você acumulou em anos precisa ser abandonado. Escolha, em sua casa, o que cabe numa mochila. Para quem está em situação de rua, esse “tudo” pode significar apenas uma sacola e, no máximo, um carrinho de rodas. Mas, se o carrinho não entra no abrigo, a pessoa tem que escolher entre o pouco, menos ainda. Ou ficar fora.
Você consegue se imaginar dependente químico e precisar passar uma noite sem a química? Consegue imaginar uma pessoa em situação de rua em São Paulo dizendo: “ando no asfalto, e não nas calçadas, porque tenho medo das pessoas terem medo de mim”?
Precisamos entender o que leva pessoas a viverem em situação de rua. Essas pessoas também desejam sair dessa condição, muitas vezes mais do que conseguimos imaginar. Assim, queremos as mesmas coisas, talvez por caminhos diferentes. A solução não está na guerra, na repressão ou na retirada forçada. É preciso pensar, ouvir e compreender as complexidades. Não são apenas as drogas, apenas o desemprego ou apenas os adoecimentos mentais. É uma mistura de tudo isso e de muitos mais fatores.
Em uma releitura do lema “nada sobre nós, sem nós”, Rafael Roberto, participante da mesa de abertura do seminário, reforçou a importância de valorizar o protagonismo das pessoas em situação de rua ao dizer: “Tudo sobre nós, com nós”.
Para saber mais sobre o diagnóstico, acompanhe: https://www.ceddhmg.org/ .