As fábulas servem como referência e possibilidade de reflexão. Dizem que se assemelham com histórias reais em diferentes tempos e lugares, porque o gesto humano é o mesmo, apenas muda o cenário. A história judaica do professor e do relógio talvez tenha nascido há muito tempo, em alguma localidade distante, mas ainda cabe nas escolas de hoje, onde professores seguem tentando preservar dignidades, e não apenas corrigir erros.
Um jovem, já adulto, reencontra seu antigo mestre. Quer agradecer, quer contar que se tornou professor por causa dele. O velho sorri, curioso, e pergunta o que o inspirou. O aluno diz que aquele velho professor, diante dele, era sua maior inspiração. Insiste que o que ele fez, quando o jovem ainda era um menino, mudou sua vida por completo. O ex-aluno então lembra o episódio que o marcou: o roubo de um relógio.
O aluno, movido pelo desejo e pela inveja, roubou o relógio novo de um colega. O professor percebeu a agitação na sala, com alguns estudantes discutindo entre si, sem saberem ao certo o que tinha acontecido. Foi quando ele descobriu a raiz do problema: um relógio, que havia sido colocado por um dos alunos em sua própria mochila antes da saída para o intervalo, havia desaparecido.
Calmamente, o professor pediu que o responsável por aquela brincadeira sem graça, ou ato impetuoso, o devolvesse. Ninguém se mexeu. Então ele trancou a porta e fez todos ficarem de pé, virados para a lousa. Disse que verificaria os bolsos e mochilas de cada aluno até encontrar o relógio, mas com um detalhe: todos deveriam fechar os olhos e permanecer assim até o final da busca.
Assim fez. De aluno em aluno, em silêncio. Quando o encontrou, não disse nada. Continuou a busca até o fim, para que ninguém soubesse quem era o culpado. E, ao final, apenas afirmou: “O relógio foi encontrado”, devolvendo-o ao seu dono, que também tinha sido submetido ao ritual proposto.
O menino nunca mais esqueceu. Sentiu a vergonha, o peso da culpa e, ao mesmo tempo, o alívio de ter sua dignidade preservada. Nenhuma palavra de repreensão, nenhum olhar acusador, nenhum grito. Só a lição, aquela que não se escreve no quadro, nem se avalia em prova.
Anos depois, quando o jovem contou essa lembrança ao velho mestre, o professor respondeu: “Lembro-me do relógio, da busca, mas não lembro de você”. Assustado, o ex-aluno não entendeu. Foi então que o professor explicou: “É porque naquele dia, enquanto olhava os pertences de cada aluno, eu também fechei os olhos”.
É uma história que fala de humanidade aliada à aprendizagem. Fala de sabedoria e de educação. Talvez por isso ainda emocione tanto. Porque mostra que, antes de ensinar conteúdos, o professor precisa aprender a proteger o que há de mais frágil e essencial em cada aluno: sua dignidade.
Mas há também outras tantas histórias que se passam em salas de aula comuns, com cheiro de infância e barulho de corredor. E elas ensinam tanto, só que de um outro jeito.
Dona Benita dava aulas de primeira a quarta série. Rígida, de olhar firme, tinha fama de brava. Mas bastava um aluno acertar um exercício difícil para o rosto dela se iluminar. O sorriso aparecia por segundos, rápido, antes de voltar à expressão severa, como se não quisesse perder o respeito dos pequenos, e a fama de brava.
Preparava as aulas num caderno encapado, colava folhas mimeografadas com o exercício do dia, desenhava margens coloridas, organizava tudo com cuidado. Tinha nas mãos o ritual de quem acreditava que educar é também um ato de afeto, mesmo quando parece disciplina.
Foi ela quem fez um menino entender que não precisava ser o melhor em tudo, mas que poderia se esforçar em cada coisa. E que, mesmo nas matérias em que era ótimo, ainda havia espaço para crescer, sem esquecer de comemorar os passos dados.
Anos depois, esse menino a reencontrou numa festa da escola. Dona Benita, aposentada, já estava mais velha do que a imagem que aquele ex-aluno, agora adulto, guardava na memória. Mas mantinha o mesmo olhar firme, que se suavizou quando o reconheceu. Abraçou-o e disse que já havia conversado com muitos ex-alunos naquela noite. Falava, com brilho nos olhos, que se sentia rica, não de dinheiro, mas de memórias. De cada um levava um traço, uma característica, uma lembrança viva.
Há professores que salvam dignidades e ensinam seus alunos a abrir os olhos para si mesmos. Uns ensinam com o silêncio; outros, com voz firme. Todos, de algum modo, plantam algo que não se apaga.
O professor da história judaica e Dona Benita jamais se conheceram. Um agiu por compaixão; a outra, por rigor afetuoso. Mas há um ponto em comum entre eles: ambos acreditavam que ensinar não é só transmitir saberes, é cuidar do que o saber pode fazer com as pessoas.
Porque educar é um ato de confiança. É acreditar que o aluno pode mudar, crescer, ser melhor. É apostar na possibilidade de redenção, seja de quem erra, seja de quem duvida de si mesmo. E, ao fazer isso, cresce também o professor.
Talvez seja isso que une essas duas histórias: a coragem de ver o que o aluno ainda pode ser, e não apenas o que ele é. O professor que fecha os olhos para não expor; a professora que enrijece o rosto para ensinar persistência. Ambos trabalham na mesma matéria-prima: o humano.
E, se há algo que o tempo não rouba, é a memória de quem nos ensinou a levantar os olhos, a reconhecer nossos erros e a seguir tentando – ou desistir do que nos faz mal.
O jovem da história judaica tornou-se professor. O menino que teve medo de Dona Benita tornou-se adulto e entendeu o amor que havia em cada ato daquela mestra. Nenhum deles se esqueceu. E é assim, silenciosamente, que a educação perpetua o que há de mais bonito: a herança invisível de quem, todos os dias, planta sementes que talvez nunca veja florescer, sementes lançadas, muitas vezes, em terrenos que muitos acreditam ser impróprios.
O professor, quando ensina com verdade, faz como aquele mestre judeu: anda de pessoa em pessoa, procurando o que foi perdido, com os olhos fechados, não por omissão, mas por não fazer distinção entre os que estão diante dele. E como Dona Benita: observa de perto cada conquista, com os olhos bem abertos.
E foi um grande professor quem disse: “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”, Guimarães Rosa.