Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Profetas em sua própria terra

Publicado em 23/05/2025 às 06:00.

Outro dia, fui à casa da minha mãe. Ela, sentada com um caderno diante de si, livros empilhados ao lado, olhos atentos, lia, estudava e escrevia. “Estudando pro grupo de hoje”, disse, como quem se prepara para um vestibular. Minha mãe é kardecista e leva a sério cada encontro virtual de que participa. Não lidera e nem é mediadora, mas participa com tamanha dedicação que parece estar se preparando para dar uma aula magna. Pesquisa, consulta livros, anota, corrige.

Enquanto eu abria meu notebook para trabalhar, ela me perguntou se podia ler um texto que havia escrito, de uma atividade do grupo que consistia na análise de alguns versículos bíblicos. Confessei que minha familiaridade com textos daquela natureza era limitada, mas ela, insistente, leu. E ainda bem que leu.

Era sobre um trecho do Evangelho de Mateus (13:53-58). Jesus, depois de ensinar por meio de parábolas, volta à sua terra natal. Lá, em Nazaré, não é acolhido com glória, mas com desconfiança. O povo o escuta, mas estranha. Questionam: “Não é este o filho do carpinteiro?”. E ali, naquela incredulidade, Jesus diz algo que me atravessou: “Um profeta não é honrado em sua própria terra”.

Fiquei entusiasmado com aquela passagem que ela me apresentou. Fazia tanto sentido naquilo que fazemos no voluntariado e no que eu percebo no meu trabalho. É algo que venho dizendo em cada oportunidade que tenho.

Lembrei dos mineiros. Fiquei pensando no tanto de gente boa que temos por aqui. Em todas as áreas: esportes, dança, teatro, cinema, literatura, gastronomia, ciência, educação. Minas pulsa talento. E, ainda assim, quanta dificuldade temos em reconhecer esse brilho quando ele vem de dentro.

Já sabendo que serei injusto com tanta gente, mas veja só: o professor Eufrânio Nunes da Silva Júnior, da UFMG, tornou-se fellow da Royal Society of Chemistry, lá no Reino Unido — considerada a mais importante organização dedicada ao avanço das ciências químicas. O professor Dirceu Greco, da Faculdade de Medicina, faz parte do Comitê Internacional de Bioética da Unesco. A professora Virgínia Lemos, do Instituto de Ciências Biológicas, tomou posse na prestigiada Academia Francesa de Ciências Farmacêuticas. E o jurista José Afonso da Silva, mineiro de nascimento e sabedoria, é um dos constitucionalistas mais citados pelo Supremo Tribunal Federal. São tantos outros mineiros, de origem ou de coração, que se dedicam a esta terra há anos.

Mas, por aqui, será que damos o valor referencial e midiático que eles merecem? Como ao Dyhan Pierre Cardoso, nascido e criado no Aglomerado da Serra, que, aos 19 anos, tornou-se o novo bailarino da companhia americana Atlanta Ballet.

É um fenômeno curioso: nossos melhores são celebrados em outros estados brasileiros ou lá fora, mas quase invisíveis em casa. A educação mineira, por exemplo, é referência. Temos escolas públicas e privadas que se destacam em olimpíadas nacionais e internacionais, grupos de teatro e dança que brilham em palcos estrangeiros, profissionais de design, como Gustavo Greco, que é premiado e reconhecido mundialmente, chegando a ocupar a cadeira do júri de diversos concursos de criatividade mundiais. E, mesmo assim, nos nossos próprios eventos, nas nossas próprias instituições, a preferência, não raro, é por nomes de fora.

E que fique claro: não há nada de errado em trazer gente de outros cantos. O intercâmbio é rico, necessário. O problema é quando ele vira regra, e o olhar para o que é da terra se apaga. Já vi empresas mineiras trazendo palestrantes de outros estados com pompa e circunstância, enquanto talentos locais, com igual (ou maior) qualidade, seguem esperando uma chance de mostrar serviço.

Eventos que se tornaram agenda certa da cidade ainda mostram pouco do que se faz aqui dentro. E, em parte, isso nem é culpa da organização — é da nossa cultura. A gente ainda tem essa mania de só dar crédito ao que vem de longe. Será que o público se interessaria por um educador brilhante, mas desconhecido, de uma escola periférica do interior de Minas? Ou preferiria alguém de outro estado, com mais seguidores nas redes sociais?

Recentemente, participei de um evento promovido por uma rede de ensino nascida aqui, em Minas. O evento aconteceu em São Paulo. O que me encheu de esperança foi ver que, mesmo fora do estado, a rede fez questão de levar para o palco alguns mineiros. Cinco, pelo menos. E não só no palco — a organização do evento era majoritariamente mineira. Foi bonito de ver. Não se tratava de bairrismo, mas de reconhecimento e valorização.

E, quando as coisas nascem de algo que valoriza a cultura do reconhecimento, tudo o que se faz vem com energia boa. Neste evento, com um cuidado e acolhimento que os mineiros sabem ter, aconteceu uma coisa interessante. Os palestrantes não estavam no palco para concorrerem uns com os outros, mas integrados num mesmo pensamento, de levar o melhor para a audiência; um deixava espaço para que os outros também trouxessem seu brilho ao evento, no lugar de brilhar sozinho.

Saí de lá com uma alegria imensa. Uma esperança renovada de que é possível, sim, valorizar o que é nosso, sem fechar as portas para o que vem de fora. Que é possível reconhecer o valor da terra sem se apequenar no mundo.

Mas é preciso trabalho. É preciso que nossas instituições, federações, associações e a imprensa local entendam isso. Que promovam, divulguem, valorizem. Que façam o exercício de enxergar o profeta enquanto ele ainda está por aqui, com os pés caminhando sobre a nossa terra, com o sotaque que carrega no “uai” toda uma história de pertencimento.

Porque, veja bem, Minas não é só de talentos passados. Minas é de presente e de futuro. E, se a gente não aprender a honrar os nossos agora, vamos perdê-los.

No fim do dia, minha mãe fechou o caderno. Disse que aquele texto a fazia pensar em muita coisa. Eu também. Pensava nos professores anônimos que formam gerações e nos artistas que brilham fora dos eixos comerciais. Pensava em mim, nas vezes em que fui convidado para falar longe, respeitando as culturas de cada lugar por onde passei, mas tendo que lutar todos os dias para mostrar valor para os daqui.

É hora de mudar isso.
É hora de, finalmente, reconhecer que temos, entre nós, muitos profetas. E que eles merecem ser honrados, sim — ainda que estejam em sua própria terra.

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