Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Proteção e carinho de mãe

Publicado em 20/01/2023 às 06:00.

Estávamos à mesa, tomando um café com a maioria das crianças, quando da sala, onde dois meninos se divertiam num joguinho eletrônico, começam a vir ruídos de briga, com direito a um pular em cima do outro, num golpe de raiva aflorada.

Corremos para a sala daquela casa de acolhimento de crianças de 7 a 12 anos de idade e os dois, já marcados pelo atrito físico, choravam, sem perderem a gana por acertarem as contas.

Querendo saber o que houve, um deles nos disse que o outro o chamou de um palavrão, daqueles que coloca a mãe no meio. O outro, ouvindo isso, teve um ímpeto de raiva e foi lá na defesa, ou no ataque, dizendo que “minha mãe não é isso, não”.

O que mais batia tinha sido abandonado pela mãe, por motivos que desconheço. E ele também, pois era muito novinho. O outro, que proferiu o xingamento, também não tinha família. Mas ambos admitiram depois que mãe não se usa nesses termos.

Cena semelhante eu presenciei num presídio, em que um servidor de cima da muralha xingava aquele monte de homem privado de liberdade por eles terem colocado as cobertas para secarem nas grades da cela, tampando a visibilidade. Exaltado, o servidor sugeriu que a mãe de um deles seria prostituta. Foi o necessário para a cela toda se revoltar.

Gritaria, barulheira, fúria mesmo.

Quando eu cheguei, eles pararam de gritar para me explicar o ocorrido. Eu, tentando fazer o papel de mediador, na mais inocente das intenções de apaziguar, usei todo o meu preparo acadêmico para dizer que se a mãe realmente fosse, que não tinha o motivo de brigar. E se ela não fosse, novamente, a briga seria inútil. De nada adiantou a minha retórica.

- “Fala da gente, mas não fala da mãe da gente, que tá lá fora trabalhando honestamente”, me disse um deles.

Lembrei da música “Na hora do almoço”, do Belchior, que fala sobre o encontro diário das famílias, que nem sempre são agradáveis. E a mãe ali, naquela cena descrita por Belchior, tentando deixar o clima mais ameno: “Minha mãe me chama, é hora do almoço”. Sim, hora do almoço é sagrada, diziam algumas delas.

Essas situações me levaram a pensar uma cena que vi, na rua, quando eu passava a noite pela região centro-sul de Belo Horizonte. Um homem caído no chão, parte na calçada e parte na rua, colocando em risco a sua vida, mas inerte, embriagado pelo álcool, imaginava eu.

Umas três pessoas que passavam pelo local ajudaram a carregar o moço para a calçada, no que chega um conhecido dele, que também vive nas ruas, ajudando como pode e nos explicando, em minutos, que a mãe dele quase morreu o dia que encontrou ele na rua, assim, desse jeito.

Acho que no susto, vendo a situação tão degradante daquele rapaz, desacordado, um dos transeuntes que ajudou em sua remoção pergunta de súbito: “mas ele tem mãe?”, no que o amigo responde: “tem, uai. Todo mundo é filho de alguém.”

Fiquei ainda pensando muito sobre esta fala despretensiosa, talvez, mas de uma força sem igual que o amigo do jovem caído havia dito e que de maneira simbólica vem sugerir algo que tenho observado: em todas as atividades voluntárias que eu participo, o que nos liga mais em humanidade é a figura da mãe.

Sei que não se trata de regra geral, que o conceito de família vai ser totalmente variável de acordo com a relação desenvolvida por seus entes. Mas, em grande parte, está ali a figura materna, em sentido real ou figurado, na nossa busca necessária por companhia, carinho, saudade, consolo, segurança, conforto, exemplo, disciplina, respostas e amor.

A mãe na figura de quem cuida ou representado algum lugar para onde queremos voltar. Algo que precisamos reconstruir, reconquistar, ressignificar. Para quem a figura materna já é forte e presente, ela simboliza a pessoa que devemos preservar.

A empatia, a solidariedade e a humanidade alimentando os filhos de todas as mães pode ser a nossa nova utopia. Sim, aquele desejo que temos de que todos tenham uma família e que ela seja amável, protetora, presente, com os conflitos inerentes às relações, mas um ente onde podemos buscar apoio mútuo.

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