Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Quando a educação muda trajetórias

Publicado em 21/03/2025 às 06:00.

O encontro com ele aconteceu de forma inesperada, em uma das visitas que faço a instituições de acolhimento. A casa, como tantas outras, abrigava histórias que pareciam silenciosas, mas carregavam ecos profundos de tentativas constantes de superação. Eu, particularmente, não gosto desse termo, porque há coisas na vida que não se superam; simplesmente segue-se em frente, buscando dar um novo significado, mas sem superar. Ninguém supera a perda de alguém que ama.

Dentre tantos outros adolescentes, ele estava sentado em um canto, observando os menores brincarem. Havia um quê de inquietude misturada a um olhar que já conhecia bem demais as durezas da vida. Por ser um dos mais velhos, deve ter experimentado, com consciência, algumas agruras, mas estava ali porque não tinha para onde ir.

A conversa começou tímida, como é comum nesses encontros. Ele é bem extrovertido, mas ainda não conhecia nada do nosso grupo de voluntários e, como todo bom mineiro, estava reticente. Falei um pouco sobre o nosso trabalho e sobre o que nos trazia ali. Aos poucos, ele foi se abrindo, contando sua história com uma clareza que apenas aqueles que aprenderam cedo demais a se defender possuem.

"Minha história é marcada por desafios que moldaram minha trajetória", disse ele, sem dramatizar, apenas constatando um fato.

Desde pequeno, a vida lhe apresentava obstáculos. Alguns adolescentes ali não conseguiram ter infância. A vida os catapultou para um amadurecimento forçado, que deixa traumas, obviamente. O doutor Gabor Maté, especialista em traumas, diz que “as crianças não se traumatizam porque se machucam. Elas se traumatizam porque ficam sozinha com suas feridas”.

No caso desse adolescente, o ambiente onde cresceu era permeado pela violência, pela insegurança, por uma rotina que os adultos costumam chamar de "vida difícil", mas que, para ele, era simplesmente a vida. Aos dez anos, foi separado do irmão e encaminhado a um abrigo. O acolhimento lhe deu um teto, alguma proteção, mas as cicatrizes emocionais e a incerteza sobre o futuro o acompanharam por muito tempo.

Os anos que se seguiram não foram lineares. Houve momentos de fuga, em que ele pulou o muro ou aproveitou uma porta aberta e ganhou a rua. Eles não estão presos, mas, como são crianças e adolescentes, ficam sob a tutela de uma organização da sociedade civil, que é responsável legal por cada um deles.

Depois da fuga, ele esteve exposto a novos riscos, a escolhas feitas na tentativa de encontrar algum sentido. A ausência de uma rede de apoio tornava a caminhada ainda mais difícil, e a luta diária pela sobrevivência se impunha como única certeza. No entanto, mesmo diante das adversidades, ele carregava dentro de si uma força silenciosa, um desejo de mudança que, aos poucos, foi ganhando espaço.

Aos 16 anos, retornou ao acolhimento institucional e decidiu buscar um novo caminho. Foi se envolvendo em atividades voluntárias, como se a dor que carregava pudesse se transformar em algo útil, algo que aliviasse o sofrimento de outras crianças que, assim como ele, precisavam de cuidado e atenção. Esse envolvimento trouxe-lhe uma nova perspectiva, uma forma de enxergar o mundo que ia além da própria dor.

Aos 19 anos, surgiu a oportunidade de trabalhar como cuidador em um acolhimento infantil. Cuidar de crianças pequenas, de zero a seis anos, foi um divisor de águas. No olhar daqueles pequenos, viu-se refletido. Entendeu que poderia ser mais do que alguém que sobreviveu às dificuldades; poderia ser alguém que ajudaria outros a superá-las. Ali nasceu uma paixão: a luta por justiça social. A cada criança que acolhia, sentia que, de certa forma, também estava resgatando a si mesmo, reconstruindo sua história de maneira diferente.

O desejo de fazer mais o levou à universidade. Hoje, cursa Serviço Social na PUC Minas. Está no terceiro período, equilibrando-se entre os estudos, o trabalho e os desafios financeiros, que insistem em testar sua determinação. Conseguiu metade da mensalidade por meio de uma bolsa, mas os outros R$ 700 são um peso difícil de carregar, especialmente quando somados ao aluguel, à alimentação, à água, à internet e às outras despesas inevitáveis.

Mesmo diante dessas dificuldades, ele não pensa em desistir. Cada aula assistida, cada texto lido, cada conhecimento adquirido são passos concretos em direção a um futuro no qual ele se recusa a deixar de acreditar.

As dívidas no cartão de crédito se avolumaram, pois foi a única fonte que ele teve disponível para quitar suas mensalidades em atraso e fazer a rematrícula. Mas agora, com as despesas do cartão e as novas mensalidades, que o salário não consegue cobrir, ele comentou com um voluntário que não desistiria, apesar da dívida crescente.

Esse voluntário comentou com uma amiga, que comentou com outro amigo e mais outro, até que conseguiram montar um grupo de nove pessoas que pagarão a mensalidade desse jovem por um ano. Com uma preocupação a menos, ele poderá estudar mais leve, sem esse peso financeiro, ao menos por um período de tempo.

Conversando com ele e com os “padrinhos”, percebi a alegria de ambos. Dele, por não querer decepcionar quem o está apoiando em um curso que é sua escolha. E daqueles que colaboram, por sentirem-se padrinhos de verdade, de alguém que, por meio da educação, vai mudar sua trajetória.

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