Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Quando o mundo encolhe

Publicado em 09/05/2025 às 06:00.

Tio Flávio*

Quando era criança, ele nunca se sentiu à vontade entre os primos, jogando bola, correndo pelas ruas ou andando em bando. Era mais calado, reservado, talvez moldado por aquele olhar duro e permanente do pai. Um pai de poucas palavras e muitos castigos. Nada se resolvia no diálogo. A autoridade vinha em forma de correia — também chamada de cinto ou cinturão. Era com aquela tira de um falso couro, que envolvia sua cintura, que o pai extravasava seu ódio, sua frustração, seus medos e derrotas. E tudo isso se descarregava nas pernas, nas costas e nos braços do menino.

A mãe, ainda que tentasse protegê-lo, não tinha força física nem moral para enfrentar o marido. Naquele tempo, nem se ouvia falar em conselho tutelar. E a fala que vinha dos vizinhos, em vez de ajudar, só piorava. As línguas afiadas muitas vezes serviam mais para condenar do que para acolher. E ele era apenas uma criança.

Mas não pôde ser criança. Há uma fala no filme Homem com H, sobre Ney Matogrosso, que retrata bem isso. Ney diz: “Eu não sou criança. Nem nunca fui, mesmo quando eu era.” Essa frase cabia perfeitamente na infância do Ney, dele e na de tantos outros.

Na adolescência, ele preferia a companhia das meninas. Não entendia por que, mas gostava de estar com elas. Se sentia bem, aceito, mesmo sem ele próprio entender direito quem era. As meninas o escutavam e sentiam que também eram ouvidas. Havia afeto e confiança. Quando uma delas começou a namorar, ele se alegrou, mas sentiu também uma dor funda — a perda da amizade, de um carinho tão grande que ele talvez nem soubesse o nome. Mariza, sua melhor amiga, era inseparável. Mas até ela encontrou um amor: uma menina mais velha, com quem logo foi morar. E mais uma vez ele ficou sozinho.

Foi só mais tarde que começou a perceber que não era como os outros meninos. Não gostava das mesmas coisas, não se identificava com os mesmos desejos. Tinha mais afinidade com o universo das colegas. Mas antes mesmo que ele pudesse se entender, seus pais já desconfiavam. O pai, furioso, culpava a mãe.

A mãe, em sua tentativa de esperança – aquela cômoda sensação de que as coisas se resolveriam sem esforço, já que a situação se desenhava como um vespeiro – dizia que era uma fase e que o filho ainda daria muito orgulho àquela família. Mas o orgulho que ela esperava não era netos espalhados nem conquistas amorosas. Era ele conseguir ser quem era, sem culpa, sem precisar merecer o desprezo de ninguém.

Nas festas de família, era sempre a mesma pergunta: “Já tem uma namoradinha?” Ele, ainda menino, dizia que preferia estudar. Mas um parente, desses que ninguém faz questão de ter, sugeriu ao pai que o levasse a uma zona para “resolver o problema”. Uma tia tentou argumentar: “Ele só tem 14 anos. É uma criança.” Mas o pai não se conformava. Repetia, com voz seca e cruel, envergonhado da cria, que preferia um filho morto a um “viado” em casa.

Foi numa dessas brigas que o pai perdeu o controle — se é que um dia teve — e jogou as roupas do filho pela janela, expulsando-o de casa. No corpo, ele já carregava as marcas do desprezo. Agora, a alma também transbordava em humilhação. 

Abandono. Culpa. Medo. “Será que sou doente?”, pensou. A mãe, da porta, chorava, tentando agredir o marido com tapas que nem faziam questão de acertar.

A cidade era pequena. Não havia muitos lugares para onde ir. Foi acolhido por uma amiga e ficou com ela por alguns anos. Ali encontrou um pouco de paz — e coragem. A coragem de assumir e, mais ainda, de se reconhecer como uma pessoa trans. Começou a deixar o cabelo crescer, pintou as unhas, vestiu roupas femininas.

Recebeu um nome novo, que passou a ser o seu nome verdadeiro. E a cidade, que já era pequena, encolheu ainda mais. De um lado, risos. De outro, ironias. Os olhares misturavam ódio e desejo, zombaria e medo

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Conseguiu um emprego na loja de uma amiga da mãe. Tinha talento para vendas, carisma, jeito com as pessoas. Mas logo a clientela começou a reclamar. Diziam que era feio ter uma “aberração” na loja. A dona, mesmo relutando, cedeu à pressão e a despediu. Mais uma porta fechada. Apesar das amigas que diziam que era preciso resistir ao preconceito, ela se sentia cada vez mais sozinha. As risadas ecoavam dentro da cabeça. O deboche virou agressão. E a agressão doía mais na alma que no corpo.

Um dia, foi à missa. Queria ouvir uma palavra de consolo. Escutou o padre dizer: “Deus ama o pecador, mas condena o pecado.” Sentiu todos os olhares voltados para si. Ou talvez fosse apenas ela, sentindo o peso do mundo em seus ombros, com julgamentos injustos, pois ignoram dores verdadeiras em nome das suas próprias ignorâncias.

Tentou outros empregos, mas foi inútil. Numa cidade com oito mil habitantes, quem contrataria uma mulher trans? O dinheiro acabou. As contas se acumularam. Foi parar na rua. Uma amiga, sensibilizada, ofereceu um quarto para que ela descansasse. Mas aquele descanso era outro. Seria o último – ou o primeiro, não sei.Mal sabia a amiga que aquele sono se estenderia para sempre. Mal sabemos nós se, enfim, ela descansa.

Lutou até onde pôde. Contra o desprezo do pai, o abandono de quem parecia amigo, a exclusão da escola, os olhares tortos e a zombaria de quem sequer a conhecia. Não foi morta por um agressor numa esquina escura. Foi morrendo aos poucos, pela dor de não se perceber pertencente ao mundo.

Hoje, ela não está mais aqui. Morreu. Matou-se. Foi morta.

*Palestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural

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