Tio Flávio*
Quando era criança, ele nunca se sentiu à vontade entre os primos, jogando bola, correndo pelas ruas ou andando em bando. Era mais calado, reservado, talvez moldado por aquele olhar duro e permanente do pai. Um pai de poucas palavras e muitos castigos. Nada se resolvia no diálogo. A autoridade vinha em forma de correia — também chamada de cinto ou cinturão. Era com aquela tira de um falso couro, que envolvia sua cintura, que o pai extravasava seu ódio, sua frustração, seus medos e derrotas. E tudo isso se descarregava nas pernas, nas costas e nos braços do menino.
A mãe, ainda que tentasse protegê-lo, não tinha força física nem moral para enfrentar o marido. Naquele tempo, nem se ouvia falar em conselho tutelar. E a fala que vinha dos vizinhos, em vez de ajudar, só piorava. As línguas afiadas muitas vezes serviam mais para condenar do que para acolher. E ele era apenas uma criança.
Mas não pôde ser criança. Há uma fala no filme Homem com H, sobre Ney Matogrosso, que retrata bem isso. Ney diz: “Eu não sou criança. Nem nunca fui, mesmo quando eu era.” Essa frase cabia perfeitamente na infância do Ney, dele e na de tantos outros.
Na adolescência, ele preferia a companhia das meninas. Não entendia por que, mas gostava de estar com elas. Se sentia bem, aceito, mesmo sem ele próprio entender direito quem era. As meninas o escutavam e sentiam que também eram ouvidas. Havia afeto e confiança. Quando uma delas começou a namorar, ele se alegrou, mas sentiu também uma dor funda — a perda da amizade, de um carinho tão grande que ele talvez nem soubesse o nome. Mariza, sua melhor amiga, era inseparável. Mas até ela encontrou um amor: uma menina mais velha, com quem logo foi morar. E mais uma vez ele ficou sozinho.
Foi só mais tarde que começou a perceber que não era como os outros meninos. Não gostava das mesmas coisas, não se identificava com os mesmos desejos. Tinha mais afinidade com o universo das colegas. Mas antes mesmo que ele pudesse se entender, seus pais já desconfiavam. O pai, furioso, culpava a mãe.
A mãe, em sua tentativa de esperança – aquela cômoda sensação de que as coisas se resolveriam sem esforço, já que a situação se desenhava como um vespeiro – dizia que era uma fase e que o filho ainda daria muito orgulho àquela família. Mas o orgulho que ela esperava não era netos espalhados nem conquistas amorosas. Era ele conseguir ser quem era, sem culpa, sem precisar merecer o desprezo de ninguém.
Foi numa dessas brigas que o pai perdeu o controle — se é que um dia teve — e jogou as roupas do filho pela janela, expulsando-o de casa. No corpo, ele já carregava as marcas do desprezo. Agora, a alma também transbordava em humilhação.
Abandono. Culpa. Medo. “Será que sou doente?”, pensou. A mãe, da porta, chorava, tentando agredir o marido com tapas que nem faziam questão de acertar.
A cidade era pequena. Não havia muitos lugares para onde ir. Foi acolhido por uma amiga e ficou com ela por alguns anos. Ali encontrou um pouco de paz — e coragem. A coragem de assumir e, mais ainda, de se reconhecer como uma pessoa trans. Começou a deixar o cabelo crescer, pintou as unhas, vestiu roupas femininas.
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Conseguiu um emprego na loja de uma amiga da mãe. Tinha talento para vendas, carisma, jeito com as pessoas. Mas logo a clientela começou a reclamar. Diziam que era feio ter uma “aberração” na loja. A dona, mesmo relutando, cedeu à pressão e a despediu. Mais uma porta fechada. Apesar das amigas que diziam que era preciso resistir ao preconceito, ela se sentia cada vez mais sozinha. As risadas ecoavam dentro da cabeça. O deboche virou agressão. E a agressão doía mais na alma que no corpo.
Um dia, foi à missa. Queria ouvir uma palavra de consolo. Escutou o padre dizer: “Deus ama o pecador, mas condena o pecado.” Sentiu todos os olhares voltados para si. Ou talvez fosse apenas ela, sentindo o peso do mundo em seus ombros, com julgamentos injustos, pois ignoram dores verdadeiras em nome das suas próprias ignorâncias.
Lutou até onde pôde. Contra o desprezo do pai, o abandono de quem parecia amigo, a exclusão da escola, os olhares tortos e a zombaria de quem sequer a conhecia. Não foi morta por um agressor numa esquina escura. Foi morrendo aos poucos, pela dor de não se perceber pertencente ao mundo.
Hoje, ela não está mais aqui. Morreu. Matou-se. Foi morta.
*Palestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural