Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Reconhecemos Deus numa dor dividida!

Publicado em 14/04/2023 às 06:00.

Ela mora sozinha por escolha própria. Já falamos várias vezes para que nos permita colocar alguém para dormir em sua casa, mas a resposta sempre é negativa. Quando mencionamos a hipótese de ela ir para a casa de um dos filhos, aí que não tem conversa, pois realmente ela não quer isso.

Adora ir para as nossas casas, ficar dois ou três dias, com suas malinhas e uma sacolinha repleta de remédios. São muitos, mas ela os controla bem. Vencido este pequeno prazo, já quer voltar o seu canto, para cuidar das plantas e se sentir em paz.

Minha mãe completará 89 anos em dezembro. Bem lúcida, ativa, gosta de estudar, lê muito, cuida das suas orquídeas, participa de reuniões virtuais de um grupo kardecista, paga todas as suas contas sem auxílio de ninguém.

Recentemente aceitou que uma pessoa dormisse em sua casa, para fazê-la companhia durante a semana. Foi um progresso, mas atualmente ela não é teimosa, não. Já foi bastante, mas depois de um tempo, com a aposentadoria e, longos anos depois, a perda do meu pai, ela foi mudando, se permitindo ser mais leve, carregando sempre a falta do seu esposo, com quem viveu por muitos anos, mas ressignificando esta e outras dores.

Na semana passada, indo se despedir do seu genro na varanda da casa, ela cisma de pegar uma pinha num pequeno jardim e escorrega, cai e machuca a mão. Feitos os exames iniciais, e com a medicação iniciada, a dor não cessava. Vai para o hospital, mais remédios são indicados, e a dor não parava. Foi aí que, ficando impossível esperar o resultado da ressonância para mostrar numa consulta a um neurocirurgião, meu irmão decide chamar uma ambulância para transportá-la de Santa Luzia a Belo Horizonte.

A utilidade da ambulância e sua simbologia construída em nosso imaginário já fazem a gente ficar desesperado. Fico pensando como as pessoas que precisam habitualmente desse recurso conseguem se acostumar, se é que isso acontece. Mas é, de fato, uma comodidade em alguns casos e a salvação em outros.

Internação, perguntas, lista de medicamentos que minha mãe usa, cirurgias que já fez. Meu Deus, é um questionário extenso demais. Eu, com quase metade da idade dela, não sei as respostas todas para estas perguntas relativas a mim mesmo. Brinquei com a atendente do laboratório: vou começar as fazer o meu inventário vital.

Sei que tem gente que acompanha seus familiares em consultas e internações e passa por este momento de incertezas e esperanças; de angústia, por tentar amenizar a dor de quem você ama; mas de fé também, em algo superior a nós e que nos guia.

Descendo num momento para a recepção e conversando com uma mãe que acompanhava o seu filho no hospital, ela fala que eles são sozinhos, então um cuida do outro. Ela mesma nunca precisou ficar internada, mas ele tem um problema grave de saúde desde a infância e, então, vira e mexe têm que correr para o hospital.

Aquela mãe dizia tudo aquilo com um olhar tão esperançoso, que a minha pouca fé foi reavivada com a dela. Ela dizia que não pode controlar aquela situação, nem ao menos mudar alguma coisa ela consegue, mas o que lhe cabe fazer é rezar, por isso o terço que segurava na mão.

E aí vem a indagação direcionada a mim: “Você crê em algo?”

Não sou uma pessoa religiosa, estudei muito o espiritismo e tenho Deus por companhia. Em alguns momentos discuto com Ele, há as oportunidades de agradecimento e de pedidos também.

Aquela mãe perguntou-me se podia segurar a minha mão para fazer uma oração. Com a minha concordância, ela fechou os olhos e ficou rezando, calada. Eu ainda estava esperando que ela fosse verbalizar algo, mas não. Ela continuava bem compenetrada, em silêncio. Foi neste momento que resolvi fechar os olhos e rezar.

Aquela senhora acabou, sacudiu minha mão e disse que nem sempre pode fazer este pedido para qualquer um, pois muita gente interpreta como fanatismo ou outras coisas. E completou: “Eu precisava tanto de alguém para me ouvir, às vezes se sinto solitária, tendo que ser forte na frente do meu filho. E, quando a gente pede respostas e se abre a elas, é justo aí que Deus manda seus anjos”.

Meio que incomodado com a patente recém recebida, disse-lhe que ela também era um anjo, naquele momento, na minha vida, pois me fez entender onde de fato mora a fé. Mora ali, naquele segurar de mãos, naquele afeto de desconhecidos que experimentam dores diferentes.

Lembro-me de uma passagem do filme “A volta do todo poderoso”, em que Morgan Freeman interpreta Deus e encontra-se, à paisana, com uma esposa em prantos, pois seu marido achava que era um “novo Nóe” e que deveria construir uma arca, atribuição dada por Deus a ele.

Foi quando aquele homem diz a ela: quando pedimos paciência a Deus, Ele manda situações para que a gente exerça a paciência. Quando você pede a união da família, Deus não manda isso em gotas ou para aplicação intravenosa. Ele manda situações em que possamos exercer esta união. Aquele meu encontro foi um desses momentos, em que a esperança e fé foram construídas da angústia de ambos.

© Copyright 2024Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por
Distribuido por