Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Saber não é o bastante

15/10/2020 às 21:00.
Atualizado em 27/10/2021 às 04:48

Em fevereiro, quando ainda tínhamos notícias de uma pandemia um pouco distante da gente, se é que essa distância realmente existe, começamos a nos consternar com a dor de diversas famílias da China, alguns países da Europa e nos EUA. No início de março, ainda sem ter ideia do que estaria por vir, as notícias em alguns Estados brasileiros já eram assustadoras, até que se iniciam os processos de fechamento de escolas, comércio, diminuição dos horários de atendimento em algumas áreas de serviço, o susto, a perplexidade, o boom das lives, reuniões virtuais, o medo do desabastecimento – que levou pessoas a estocarem até papel higiênico.

Começaram a intensificar os trabalhos em casa, os deliverys sobressaíram, assim como as comprar virtuais. Já sentíamos a pressão pelo crescente número de vítimas fatais no Brasil, agora “tão perto” da gente. A preocupação com os amigos, a busca pelos contatos virtuais para mandar um “abraço” a quem se gosta e, por circunstâncias que atribuímos à vida, nos distanciamos fisicamente, antes mesmo da pandemia. 

O cuidado com os idosos sendo redobrado, as chamadas de vídeo para parentes que ficaram em casa, isolados do convívio de amigos e familiares pelo bem da sua própria saúde. 

O desespero de famílias que precisavam de ajuda para se alimentar, a perda de patrocinadores por parte de algumas organizações da sociedade civil, apesar do crescimento de doações para novas campanhas. A angústia de muitos, o desespero de vários.

Os professores usando a criatividade e aprendendo ou ampliando o uso da tecnologia para chegarem até os seus alunos, os profissionais de limpeza sendo reconhecidos pela importância do seu trabalho, a homenagem aos heróis da saúde, não apenas os enfermeiros e médicos, mas todos que atuam no contexto de hospitais, postos de saúde, etc.

Em meio a tudo isso, ouvi uma pessoa dizer que “não há um lado bom da pandemia, assim como não há o lado bom de uma guerra”, o que entendo perfeitamente. Mas sabemos também que é inegável que tivemos uma aceleração de mudanças e que o atual momento provocou ainda mais reflexões, mesmo que não seja um efeito de massa, mas em pessoas que descobriram que de tudo pode-se tirar algum aprendizado.

Um ativista social brasileiro chamado Eduardo Marinho diz que não viveremos num mundo evoluído, mas devemos atuar para que haja esse mundo exista. E ele reforça que a maior mudança começa quando o indivíduo de fato se abre a viver, errar, experimentar e tirar de tudo isso alguma lição que o melhore. Ele não se referia, nessa entrevista, à pandemia, já que a sua fala foi anterior a ela.

Ao buscar inspiração em grandes pensadores e filósofos do passado, temos tanta riqueza de aprendizado. Com algumas lições nos identificamos mais que outras e podemos chegar à conclusão íntima, pessoal, individual de que é essa a maneira de viver que queremos abraçar. Daí nos deparamos com pensamentos como “evitar o ódio e a raiva”, “tornar-se melhor a cada dia”, “entender o que se pode ou não controlar, na vida”, “criar um nível de imperturbabilidade que as alegrias e as tristezas não sejam transformadas em doenças pelo excesso”. Tudo isso é lindo, muito bom e um ideal de vida. Mas, no dia a dia, na lida com as pessoas, no atendimento ao cliente, na reunião da família, numa mensagem recebida virtualmente, eis que a raiva aflora, reagimos por impulso, pensamos e falamos o que sentimos, mas não gostaríamos de externalizar por razões diversas e, assim, enterramos todos os ensinamentos virtuosos aprendidos nos livros e em aulas.

Nessa hora vem o questionamento: isso tudo é muito grande para uma pessoa tão pequena quanto eu. Será que isso é para mim? será que dou conta?
Um lama brasileiro, chamado Michel, numa das suas falas para o TEDx, trouxe um ensinamento tão interessante para pensarmos a difícil “distância” existente entre o conhecimento das virtudes e a sua prática:

“Ficar com raiva é bom ou ruim? Ruim. Saber que não é bom ter raiva é o suficiente para você não ter mais raiva? Não. saber não é o bastante. A gente precisa verdadeiramente ter experiências, para que elas façam parte da nossa vida.

Tendo em vista o que eu quero para a minha vida, ir diminuindo, um pouco a cada reação, tirando de si aquilo que não é coerente com quem você quer ser. Como disse o Eduardo Marinho, em uma entrevista a um grupo de estudantes: perceba em si o machismo, o ego, a tendência ao confronto e vá eliminando, aos poucos. E ele arremata: “até hoje tenho coisas condicionadas em mim que tenho trabalhado”.

  

© Copyright 2024Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por
Distribuido por