Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Saudades

Publicado em 06/05/2022 às 06:00.

Eu adoro viajar de ônibus e escolho, de preferência, viagens diurnas. Já gostei mais de viajar a noite, hoje tenho medo.

Sigo um ritual para as viagens: compro a última poltrona, lá no fundo do ônibus, para poder recliná-la sem incomodar ninguém. Ali eu durmo, aprecio a paisagem, tiro fotos e em viagens de um dia todo eu consigo ler um livro inteiro.

Alguns dias atrás eu fui a Unaí, cidade que me recebe tão bem que já me sinto em casa. As pessoas fazem a cidade, com certeza. Dei palestras na unidade socioeducativa para adolescentes em conflito com a lei que moram ali pela região: João Pinheiro, Paracatu e até mesmo em Patos de Minas, que não é tão perto assim.

Foram dois núcleos atendidos e três palestras realizadas pela manhã. Ao final de cada atividade, recebo um aperto de mão ou um abraço com uma gratidão que me comove.

Sempre entro numa palestra tentando entender e respeitar cada pessoa que me ouve. São histórias de vida que estão ali sentadas diante de mim. Cada uma diferente, por mais semelhanças que tenham.

À noite o pessoal do Sebrae me esperava para conversar com os comerciantes e empreendedores locais. Um momento delicioso, com a presença de alunos das áreas de vendas e administração e a troca carinhosa de conhecimento, ao final, com perguntas direcionadas a mim e a dois convidados.

No dia seguinte eu teria que pegar um ônibus cedinho, de uma viação que nunca ouvi falar o nome. A recepcionista do hotel garantiu que eu poderia ir a pé até a rodoviária, pois não tinha risco algum.

Às 5h30 eu já estava na rodoviária e a atendente da empresa chegaria em 10 minutos. Ela desce da moto, estaciona, entra no guichê e já vem para o atendimento antes que o primeiro ônibus saia. Com muita atenção e educação, falou que da próxima vez eu podia ligar lá que ela já deixaria a minha passagem separada, pois comprar pela internet é muito caro. E foi assim, conversando, explicando que adora o trabalho e que ali ela acaba conhecendo muita gente. Disse que o trabalho nunca vira rotina, pois a maioria das pessoas está de passagem por ali. Eu disse a ela que minha profissão de palestrante era bem parecida com a dela, neste sentido, pois conhecíamos gente nova todos os dias e a interação é constante.

Ao embarcar no ônibus percebi que eu não tinha feito a escolha da poltrona. Como foi comprada pela Aracredi, a cooperativa de Araguari onde eu daria palestra no dia seguinte, entendi que a reserva tinha sido automática. A poltrona, diferente do que eu preferiria, era na segunda fileira.

Logo ao entrar, as senhoras que estavam nas primeiras poltronas conversavam entre si de maneira bem animada, mas também não se conheciam. Elas me olharam, cumprimentaram e eu sentei-me bem atrás delas. No caminho, a conversa continuava. Falavam com carinho dos filhos, contavam que estavam todos criados, os netos já estudando e via-se que aquelas mulheres, idosas, eram bem felizes e orgulhosas das famílias que constituíram.

As piadas que uma contava para as outras me fizeram rir sozinho. Eu estava com muita vontade de participar daquela prosa boa. Tentei identificar o momento de pedir licença e juntar-me a elas. Mas estava, ao mesmo tempo, saboreando cada história como espectador.

Uma perguntou às outras: “Vocês já ouviram aquela história de que Jesus assumiu o turno de trabalho de um médico”? As outras responderam que não, e a senhora começou: “Um médico largou o turno e Jesus assumiu o seu lugar. Entra um cadeirante e Jesus olha para ele e diz: levanta-te e anda. O cadeirante se levantou, saiu da sala e encontrou outros pacientes aguardando. Eles perguntaram: e o médico, é bom? O paciente, curado, responde: igualzinho a todos os outros: não examina, não pergunta nada e nem toca na gente”.

Nesta hora todas riram e concordavam que faltava mais gratidão às pessoas.

Uma delas, a que se sentou ao meu lado, tira da sacola uma vasilha com biscoitos caseiros, oferece às demais e a mim. Logicamente que aceitei. Quando menos espero, ela tira uma garrafinha de café e copinhos plásticos. Distribui a todos e me dá um também.

Eu, na primeira etapa da minha longa viagem, sentado ao lado de cinco idosas animadas, que numa simplicidade na fala e no lidar umas com as outras, me fizeram entender que às vezes é preciso mudar de lugar para ampliar a perspectiva. Pode ser que nada disso tivesse acontecido ao sentar-me na frente. Também não nego que gosto de ficar lá atrás. Mas uma mudança, não programada, me fez sentir menos o peso da viagem e me despertou saudades da época em que conversávamos mais desta forma, sem mediação tecnológica e com uma confiança despretensiosa.

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