Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Simples: seja feliz

23/07/2020 às 20:23.
Atualizado em 27/10/2021 às 04:06

Como eu tenho trabalhado virtualmente, de casa, mais isolado e saindo muito pouco, sou o único filho que a minha mãe permite que vá visitá-la, já que aos 84 anos, com diabetes e pressão alta, ela tem se cuidado ao máximo da sua saúde. 

Aprendeu a usar o youtube e tem feito várias pesquisas, participa ativamente das reuniões do seu grupo kardecista, com muito entusiasmo em, inclusive, preparar estudos para apresentar aos demais participantes. 

Agora, enquanto redijo, ela está fazendo um “culto no lar”, tendo me deixado com a atribuição de cuidar de uma torta no forno. Ela cozinha, toma sol diariamente por 10 minutos, cuida das plantas e da cachorrinha que cresceu mais do que ela esperava.

Quando sente alguma “coisa ruim”, já aciona os médicos de sua confiança, por aplicativos de telefone. Os filhos e netos a monitoram diariamente e ela não se sente invadida em sua privacidade. Faz caminhada em volta da casa, mas não é todo dia, ainda mais no frio. Já orientamos que ela leve o celular pendurado no pescoço, para usar em alguma urgência. 

Quando aviso que vou passar um dia em sua casa, ela me pergunta o que quero para o almoço. Sabe da minha preferência por um feijão cozido com couve, carne de charque e abóbora e isso, então, nunca falta. Ao chegar lá, por volta das 9h30, ela já está com a mesa posta, café pronto, torradas, pão de queijo. O queijo eu levo às vezes.

Sento-me na cozinha, converso, depois ela vai fazer o que é preciso no quintal e eu começo a trabalhar. Evito o uso do celular e do notebook quando ela se senta à mesma mesa que eu, na cozinha. O rádio tem que ficar ligado, e um pouco alto, para ela ouvir de onde estiver. Sabe de tudo que acontece em Belo Horizonte, alimentada das notícias que acompanha. Disse que assistiu um show ao vivo do Maurício Tizumba no youtube, na noite anterior, e se sentiu melhor do que quando assiste a novela, já que tem muita “ruindade”, nas palavras dela.

Antes de ir para a casa da minha mãe, que fica próximo a BH, gravei um vídeo, a pedido de uma voluntária, para ser enviado para um dos nossos grupos de idosas que vivem num lar no bairro Planalto. Não queria dizer que “vai passar”, “em breve estaremos aí”, por não sentir a segurança nessas expressões. Então resolvi contar uma historinha, que às vezes recordo e me dá muita alegria.

Há dois anos, quando fomos fazer o Natal de homens, mulheres e crianças num albergue que atende pessoas em situação de rua, eu estava numa janelinha da cozinha ajudando a servir o jantar, justamente no dia 24 de dezembro. Um monte de voluntário envolvido na ação, muita gente “correndo” dentro da cozinha e tantas outras comendo ao mesmo tempo do outro lado da janela, no salão. Demos conta de entregar todos os pratos e os copos de refrigerante e já começamos a montar os copinhos de sorvete.

Distribuídas as sobremesas, eu encosto na janelinha retangular, que fica à altura do meu peito, o que impede de ver o salão se eu não me abaixar. Vejo uma mãozinha chegando e ouço alguém que me diz: “tio, eu não vou mentir, não. Eu já comi um sorvete, mas será que eu posso comer outro?”. Quando abaixo para ver quem é, surge à frente um copinho sujo de sorvete, o que já o entregava, e uma cara toda lambuzada de uma criança de uns 8 anos, com uns dentinhos faltando na frente, sorrindo de felicidade, cabelinho recém penteado, ainda molhado.

Ao chegar à casa da minha mãe percebi o que aquele menino, no Abrigo São Paulo, que pernoita com a sua mãe numa instituição para pessoas em situação de rua, me ensinou em sua ingenuidade: sem sentimentalismo extremo, também conhecido como pieguice, pensei que sentar para tomar café com a minha mãe e comer o feijão que ela prepara porque sabe que eu gosto, é uma alegria vivida, aproveitada, comemorada, vinda de um fato tão simples, mas que gera tanto bem-estar. 

Nesse mesmo dia, na saída para ir à casa da minha mãe, recebo na minha portaria um livro que chegou de encomenda. O título é “Seja mais Feliz”, do pesquisador da Psicologia Positiva e professor da Universidade de Havard, Tal Bem-Shahar, que tem na capa os dizeres: “aprenda a ver a alegria nas pequenas coisas para uma satisfação permanente”. Acho que esse tema tem me perseguido. 

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