Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Sob as Luzes do Natal

Publicado em 06/12/2024 às 06:01.

Algumas ruas de Belo Horizonte, em dezembro, assim como em muitas cidades, são tomadas por uma atmosfera de encanto e expectativa. No coração da capital mineira, a Praça da Liberdade se transforma em um cartão-postal iluminado, atraindo famílias que buscam a magia do Natal em meio a um mar de luzes e adereços. Pais seguram as mãos de crianças de olhos brilhantes, casais caminham de mãos dadas, filhos amparam o pai ou a mãe já idosos, e grupos de amigos trocam risadas sob um céu que, em alguns dias, parece conspirar para o momento. É o prelúdio das festas que se aproximam, das mesas postas e dos abraços guardados por um ano inteiro entre familiares que moram distantes ou que distantes vivem.

Ao redor, pela cidade, o Natal se desenha em cada detalhe. Dentro de suas casas, famílias preparam os encontros tão esperados. O aroma da ceia invade as cozinhas, enquanto as árvores ganham seus últimos presentes. Há um certo frenesi em cada gesto: as compras de última hora, os embrulhos coloridos, a expectativa dos reencontros, as luzinhas piscando na entrada do lar. A árvore, montada coletivamente, exibe símbolos natalinos, embrulhos que simulam presentes e meias penduradas, aguardando que algo seja depositado nelas, numa clara alusão a uma cultura que não é nossa, mas que muitas famílias já incorporaram. “Este ano, finalmente estaremos todos juntos”, diz uma mãe à filha pelo telefone. O Natal é, antes de tudo, uma promessa de mudança íntima, de renovação. Ainda que muitas vezes não passe de intenção, ou que para algumas famílias seja um momento de comilança e para outras, de falta do que comer, ele ainda carrega essa promessa.

Ainda mais nessa temporada, as pessoas ficam mais sensíveis. Uns abominam a data; outros, que perderam entes queridos, carregam lembranças difíceis — da mãe que organizava tudo ou do pai que preparava os assados. A ausência dessas pessoas muitas vezes quase extingue o encontro familiar, deixando um vazio difícil de preencher.

A celebração, porém, também tem suas versões sem muitas luzes e nenhum luxo. Não muito longe do brilho da Praça da Liberdade, sob o passeio que circunda um imponente prédio público — impotente diante de tantas dores que abriga sem querer —, a noite desenha outro cenário. Cerca de dez pessoas dormem ali, enroladas em cobertores finos e em barracas improvisadas, próximas mais pela necessidade de calor e proteção da chuva do que por festividade. Enquanto o resto da cidade se apressa a festejar, para eles, a noite parece tão longa quanto o ano que se despede.

Passeio pela praça, admirando as luzes. No vai e vem da multidão, ouço fragmentos de histórias. Uma criança pergunta ao pai sobre o Papai Noel que segura um pedaço de queijo gigante. Um casal mais velho, de mãos dadas, comenta sobre como a praça era diferente em seus tempos de juventude. Muitas pessoas elogiam a iluminação, reclamam da incidência de chuvas e vibram com a abertura do Palácio da Liberdade para visitações temáticas. A cada canto, uma narrativa se desenrola, enquanto o Natal reafirma seu poder de reunir e despertar memórias e sentimentos.

Fui levar alimentos para dois rapazes que dormem em um daqueles passeios. Um deles me conheceu em um presídio; saiu de lá, voltou para sua cidade, no Vale do Aço, mas não conseguiu se adaptar à família. Conheceu um rapaz e, juntos, vivem pelas ruas, sem lugar fixo para se estabelecerem. Levei a eles pacotes de suco, dois sabonetes, creme dental, macarrão instantâneo e outros itens. É difícil para eles terem muitas coisas, já que suas vidas são nômades. Pela manhã, retiram seus pertences e desmontam barracas para evitar que sejam confiscados pela fiscalização ou guarda municipal. À noite, vão a pontos onde ONGs distribuem jantar. A justificativa para não irem para abrigos é que já foram roubados enquanto dormiam.

Um casal se aproxima. Ele tem a barba por fazer e mãos marcadas pelo trabalho e pelo tempo na rua. Ela, com olhos cansados, segura uma sacola plástica esverdeada que parece carregar todos os seus pertences. “O colega aqui disse que o senhor ajudou ele num abrigo”, diz o homem. Confirmo com um aceno, e ele continua, aflito, mas determinado: “Pode me ajudar? Eu e minha esposa não somos daqui, queremos sair dessa vida, porque rua não é lugar para ninguém”.

Seus olhares carregam convicção e desespero. É um pedido que vai além da necessidade material; é um clamor por dignidade e por uma chance de recomeço. Uma amiga que estava comigo fala a quem procurar para tentar uma vaga num lar social.
Enquanto eles se afastam, agradecendo pelas orientações, o contraste entre os cenários da cidade pulsa em minha mente. O Natal na praça é lindo, sim, mas há outro Natal, menos iluminado, porém igualmente humano.

Deixo a praça com uma sensação mista. As luzes permanecem piscando, as risadas continuam ecoando, e as famílias seguem celebrando. E isso é bom, é necessário. Mas é impossível ignorar que, sob as luzes que enchem nossos olhos, há “sombras” que pedem ajuda. Que o espírito natalino nos alcance a todos, não apenas nos abraços que damos e recebemos, mas também na coragem de enxergar e agir por aqueles para quem a noite de Natal é só mais uma noite.

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