Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Sobreviver não é sobre viver!

Publicado em 30/06/2023 às 06:00.

Era uma segunda-feira de inverno em Belo Horizonte. O sol apontava, mas não queria saber de esquentar nada. Nas ruas, as pessoas com blusas de frio andavam encolhidas. No meio da tarde, eu e meu irmão fomos de Santa Luzia até uma instituição próxima à estação São Gabriel, para a entrega de pares de meias para pessoas em situação de rua.

Um grande parceiro do Tio Flávio Cultural, movimento voluntário que coordeno, sempre organiza a arrecadação de alguns itens com os seus amigos e nos repassa, para que a gente doe diretamente para quem precisa ou para uma organização que fique com esta incumbência.

Ainda era meio da tarde quando chegamos à rua daquele abrigo, que acolhe diariamente cerca de 40 mulheres e 160 homens para o banho, jantar, pernoite e café da manhã. Logo após esta rotina, as pessoas ganham as ruas de novo. Alguns vão em busca de emprego, outros fazem cursos e outros vagueiam pelas proximidades, sem muitos recursos para irem muito longe.

A rua estava lotada de gente, sentada no meio-fio ou em pé, numa fila meio que tacitamente combinada, cada um aguardando a sua vez. Abraçados aos seus sacos plásticos e sacolas, alguns buscavam um alívio do frio no pouco sol. À primeira vista, quem entra naquela rua vê um cenário que parece mais com o de uma guerra: pessoas fatigadas, lançadas ao chão. Ao conversar com cada um, descobrimos muitos “sobreviventes”. Porém, como dizia um banner na entrada da biblioteca pública de São Paulo: sobreviver não é sobre viver.

Nesta instituição as mulheres entram primeiro, a partir das 15h30, assim como os idosos. Os homens entram meia hora mais tarde.

Todos que vão em busca de uma vaga estão em situação de rua. No frio e na chuva, as vagas acabam rapidinho e o abrigo tem que respeitar o limite estipulado, dizendo não para alguns que chegaram depois.

Eu e meu irmão estávamos na porta, mas do lado de dentro do abrigo, para receber quem chegava. Ao entrarem, já iam sendo identificados no portão mesmo, por um funcionário que pegava os seus documentos, ia ao balcão da recepção, onde eram colocados os dados numa lista, tudo de maneira organizada. Só aí o funcionário voltava à porta e chamava pelos nomes aqueles já autorizados a entrar.

Eles formavam uma fila para guardarem seus pertences: sacolas ou mochilas onde carregavam tudo o que tinham, pois não têm mais onde deixar nada que é seu. Ali estava uma vida, resumida em roupas e poucos objetos, acondicionada numa sacola de plástico, levada para cima e para baixo pelas ruas. Alguns não tinha nada além de uma bolsinha murcha.

Quando os idosos começaram a entrar, vimos muitos de cabelos brancos, andar lento, alguns deles apoiados por muletas ou bengalas. Um senhor, bem pequeno, dava alguns passos e puxava a calça, que insistia em cair. Guardava um documento no bolso traseiro, com movimentos bem vagarosos. O meu irmão foi ao seu encontro e perguntou se ele aceitava uma meia e, na sequência, brincou e disse: uma não, um par. O idoso riu, parou, cheirou a meia e disse: esta está novinha. As funcionárias do abrigo, no balcão, riam e mexiam a cabeça, apontando para ele afetuosamente. Aquele senhor abençoou o meu irmão e seguiu, em ritmo moroso, para o guarda volumes, que fica a poucos passos dali.

Um outro, que não sei definir a idade, chegou de ambulância. Estava numa UPA e foi liberado, como vive em situação de rua, foi levado para o abrigo para pernoitar ali. Chegou com o pé enrolado num saco plástico preto e o outro descalço. Quando recebeu o par de meias, nem acreditou que era para ele. Perguntou se teria um chinelo que ele pudesse calçar após o banho e eu respondi que éramos voluntários e estávamos ali para a entrega das meias apenas, mas que o pessoal do abrigo iria providenciar. Ele concordou balançando a cabeça e agradecendo novamente.

Um outro, agora idoso, também chegou de ambulância. Ainda estava com uma roupa azul do centro de saúde, apoiado em duas muletas, já que uma de suas pernas era amputada. Quando ele entrou, uma enfermeira vinha junto carregando a sua mochila. Um cheiro de leito de hospital mesclado com urina invadiu o ambiente. Umas das funcionárias perguntou à enfermeira sobre o odor e ela disse que lá na instituição de saúde onde ele estava não tinha condições dele lavar as roupas, ainda mais sendo uma pessoa sozinha.

Cada pessoa que chegava reagia de maneira bem diferente à nossa abordagem. Uns se assustavam, outros desviavam da gente, outros voltavam para conversar, tentando entender quem éramos. Um deles voltou e disse: é muito bonito isso que vocês estão fazendo. Eu sou cuidador de carros e toda vez que um cliente pede para lavar, eu faço com maior carinho, porque sei que tudo que a gente entrega, volta na nossa direção. Então, faço a minha parte, disse ele.

A cada pessoa que entrava, o rosto visivelmente carregado de muito sofrimento se permitia um sorriso de gratidão ao receber um par de meias e um olhar sem cobranças.

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