Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Sobreviver nunca foi sobre viver

Tio Flavio
Publicado em 31/03/2023 às 06:10.

Naquele dia eu entrei no pavilhão e fui parando de cela em cela, como procuro fazer todas as vezes que vou para alguma atividade numa unidade prisional. Como a demanda de atenção é muito grande, uns não conseguem esperar que eu chegue para falarem o que precisam, gritam do outro lado, pedindo para eu não deixar de chegar até lá.

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 Lá no fundo do corredor um jovem me entrega um papel em que dizia que era para eu mandar uma mensagem para a sua mãe, explicando-lhe que era para mandar uma carta para ele e completando: “Fala que se ela soubesse o peso de uma carta nesse lugar, que ela mandaria uma por dia”.

Saí pensando naquele bilhete. Passei o papel para a assistente social da unidade, pedindo que fizesse o contato com a mãe do rapaz. Lembrei de outros casos em que a solidão era tristemente manifestada, como em algumas frases reflexivas ditas por alguns idosos de uma instituição que costumávamos visitar.

Alguns idosos se emocionaram quando eu levei uns quadros feitos por recuperandos da APAC, uma instituição diferenciada, com uma metodologia própria, que se dedica à humanização da pena e à ressocialização de pessoas privadas de liberdade.

Em meio a alguns deles, uma senhora foi bem sincera na fala: “Ah, eles são presos?”, perguntou-me, no que continuou após a minha resposta positiva: “Sorte deles, né?”. Confesso que eu não estava entendendo se de fato ela compreendia que eles estavam presos. Perguntei, para sondar, o porquê da “sorte” como ela havia empregado na frase. A resposta é tão dura que eu só dou conta de relatar parte dela: “um dia eles saem de lá, né?”.

Há um movimento mundial dedicado a pensar como a tecnologia pode servir de companhia para as pessoas em lares de idosos, criando robôs que podem fazer algumas atividades domésticas, mas, sobretudo, que aplaquem a solidão de quem não espera mais nada da vida.

Assuntos como este me instigam tanto que comecei, há alguns anos, a estudar a solidão, não apenas aquela que vem do abandono por parte de familiares e amigos, que acreditam que encontrarão seus pais todas as vezes que os buscarem naquela casa bem estruturada que pagam para eles passarem a sua velhice. Como confiam no lugar, acreditando ser o ideal, acabam por relaxar nas ligações e nas visitas.

Mas me dói bastante encontrar pessoas que não têm mais ninguém; ou aquelas que estão em meio a tanta gente mas, como disse Bauman, o sociólogo, que vivem numa multidão e numa solidão ao mesmo tempo.

Há aqueles que se abandonaram. Redes de locação de amigos também crescem mundo afora como um negócio lucrativo e alternativo, em que alguém toma a iniciativa de escolher um amigo numa lista de profissionais que se propõe a sair para conversar, assistir filmes, visitar museus, discutir um livro. Sim, isso existe e tem tido um crescimento admirável - sei lá se o termo mais correto não seria assustador. As pessoas pagam por este serviço.

Podemos falar de adolescentes que buscam o uso de uma droga como afronta, para gozarem da adrenalina do ilícito, ou que visam chamar a atenção das pessoas ou buscarem pertencimento. Muitos deles vivem em plena solidão.

Mas vou voltar aqui para os idosos. No auge da sua experiência, uma pessoa se aposenta. Ela, que carregava o sobrenome de uma empresa, inclusive sendo reconhecida por ele, agora está em casa. O envelhecimento impacta o corpo, como a perda da visão e da audição, o que faz com que elas tenham um afastamento social, que coincide com a perda de um certo status, o corte abrupto – apesar de esperado, nunca foi preparado – do nome da empresa que estava associado ao seu próprio, a perda de significado, a falta de tempo dos filhos, os adoecimentos e a vontade de não mais existir: Desistir. 

Solidão não se vence só estando perto. Tem gente que está perto e não percebe ninguém mais além se si mesma. Talvez seja um solitário que não se apercebeu assim.
Noreena Hertz publicou um livro chamado “O século da solidão: Restabelecer conexões em um mundo fragmentado”, que faz inúmeras observações sobre a atualidade e como podemos atuar efetivamente nessa que se desenha como uma doença silenciosa.

Recentemente visitei uma unidade prisional feminina. Trabalhava o tema “sentido da vida” com as custodiadas. As policiais penais que me ajudam nesta tarefa tinham pedido uma redação, antes da minha palestra, em que elas deveriam escrever livremente sobre como viam a vida. Li os textos antes de iniciar a minha fala, o que me fez mudar completamente o que tinha proposto para aquele dia.

Uma custodiada contava as perdas de pessoas da família que a levaram a não ter mais ninguém no mundo. Dizia que vegetava. Foi quando me lembrei de um banner que vi na biblioteca pública da cidade de São Paulo, que dizia que “sobreviver nunca foi sobre viver”.

*Palestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

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