Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Solidariedade é via de mão dupla

01/07/2022 às 06:00.
Atualizado em 01/07/2022 às 08:49

No meio do ano passado uma situação desoladora acontecia numa penitenciária mineira. Com a pandemia tendo suspendido o acesso de familiares, professores e voluntários em todas as unidades prisionais e restringido atividades diversas em função da contaminação pelo vírus da Covid, ascendeu uma sequência de pessoas que praticavam o autoflagelo e o autoextermínio, o que acendeu o sinal vermelho para a situação das pessoas encarceradas.

As notícias pelos veículos de comunicação eram alarmantes para quem estava aqui fora, acompanhando o número de mortes que crescia; o pânico que tomava conta das cidades; escolas e comércios que fechavam; ruas que esvaziavam; silêncio que incomodava e invadia as janelas dos apartamentos onde verticalmente moramos. Estávamos presos em casa, sem poder sair como havíamos feito em dias anteriores e tudo isso nos assustou.

Os nossos familiares idosos deixaram de ser visitados e o contato físico passou a ser apenas por videochamadas. Os casais e filhos dividiram mais tempo juntos, muitas crises surgiram pela falta de habilidade no convívio e outras situações foram agravando ainda mais a nossa convivência e saúde.

Dentro dos presídios, trancados em um espaço menor, sem acesso a informações de familiares, convivendo com pessoas desconhecidas, estavam outros tantos indivíduos.

Não vou entrar na discussão de crime, castigo e ressocialização, pois não é para isso que resolvi escrever este relato. Mas, fato é que fomos chamados, com autorização especial do Rodrigo Machado, diretor do Departamento Penitenciário de Minas Gerais (Depen-MG), a criar alternativas que pudessem trabalhar, de maneira voluntária, a saúde emocional e mental das pessoas que ali estavam acauteladas, o que nos levou a pensar em ações que também pudessem contemplar os servidores daquela unidade.

Convidamos diversos voluntários que se uniriam numa força-tarefa que tinha, de início, o foco na saúde emocional. Aulas de artes e artesanato num pavilhão, com as artistas Marcela Melo e Mariângela Souza; aula de cabeleireiro com a professora Kaká; oficinas de teatro com o ator Marcelo Ricco e de dramaturgia com diretor teatral Marco Amaral; rodas de conversa com a psicóloga Kellen Cristina; oficina de massoterapia com a Clésia Perdigão e um projeto de troca de cartas com o movimento Mães pela Liberdade, de acolhida a familiares de pessoas LGBTQIA+.

Tivemos concurso de redação, com temas bem reflexivos, apresentações musicais e outras atividades mais. Um detalhe merece ser ressaltado: todas as pessoas envolvidas eram voluntárias. O público da penitenciária é constituído por presos e presas LGBTQIA+, que já trazem consigo uma carga de questões mal resolvidas da infância e adolescência, de conflitos familiares, preconceitos, sofrimento mental, abandono, miséria, sendo muitos vindos da prostituição ou de situação de rua.

Isso já nos escancarou uma necessidade de escuta, o que fazíamos nas oficinas ou nas visitas aos pavilhões. Como a oficina de artesanato tinha uma produção de peças bem contínua, começamos o projeto “Dê Flores”, levando tudo que ali era produzido para ser doado a comunidades bem vulneráveis, em forma de presente, sempre acompanhados de flores de papel, também feitas pelos presos.

Acho que tudo isso sensibilizou os participantes que, diante da notícia das ondas de frio que cobririam o país nos dias que antecediam o inverno, resolveram me procurar e pedir material para a produção de toucas para moradores de rua, já que muitos ali passaram por esta situação e conhecem a dura realidade das ruas. Também sugeriram que parte da produção fosse doada para idosos institucionalizados.

Tendo o apoio da direção da unidade, que foi fundamental para o projeto acontecer, das profissionais de Pedagogia e de Produção, dos policiais penais envolvidos no trânsito interno dos presos, dos profissionais da censura de itens que adentram a unidade – ufa! É toda uma logística, da juíza da Vara de Execução Penal, dra. Bárbara Nardy, dos promotores e defensores locais, iniciaríamos o projeto.

Numa campanha com amigos, conseguimos as lãs. O projeto Comida que Abraço se juntou a nós e doou, também, material para a produção dos gorros. Um preso, com muita habilidade artística, se ofereceu para confeccionar e desenhar cartões e decidimos que cada peça produzida iria num saco plástico, com um laço de lã e esse pequeno cartão anexado, tudo feito manualmente, desejando a melhor acolhida a quem quer que recebesse o presente.

Em 28 de junho, data em que se comemora o Dia do Orgulho LGBTQIA+, fizemos uma apresentação musical com a cantora Paula Sete e a drag Angel Sun e recebemos, “oficialmente”, 75 toucas, das 200 a serem produzidas. Agora, o fruto deste trabalho que envolveu tanta gente estará na cabeça de tantos outros, aquecendo-os e dando-lhes um pouco de dignidade.

© Copyright 2024Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por
Distribuido por