Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Somos egoístas?

Publicado em 04/03/2022 às 06:00.

Eram três, mas um deles arrumou emprego. Os outros dois irmãos continuam ali, nos sinais das avenidas Álvares Cabral e Bias Fortes, no Centro de Belo Horizonte. Quando mais novos, tomavam conta dos carros na rua Santa Catarina, depois começaram a vender balas. Com o início da pandemia, e o medo das pessoas em tocar superfícies estranhas, as balas e paçoquinhas tiveram que ser substituídas pela água com detergente jogada nos para-brisas dos veículos.

Um dia desses, dentro do supermercado, o irmão mais velho estava comprando água. Disse que não conseguiam achar um lugar na rua para pegar água e preferia comprar, pois era mais seguro usar uma água limpa.

Sempre que posso e que passo por eles nos fins de semana levo uns copos descartáveis e um refrigerante gelado, que eles dividem entre os três alegremente. Falei para eles que uma pessoa me doou umas roupas de crianças e perguntei se tinham irmãos mais novos, ao que me falaram que além de um bebê, tinham mais dois.

Todos os meses uma funcionária do prédio onde eu moro doa sua cesta básica para que eu possa direcionar para alguma família. Eu sempre entrego para um jovem, recém-saído de um abrigo, que mora com a sua mãe, que é desempregada e que recebe um auxílio de menos de cem reais. No mês passado ganhei duas cestas e resolvi perguntar aos meninos se eles queriam.

Um deles me acompanhou até o prédio e pegou a cesta, pesada, que ele colocou no ombro e disse que dividiria o peso com o irmão, para que eu ficasse despreocupado. Entreguei uma sacola daquelas retornáveis, mas ele dispensou, pois colocariam alguns itens nas mochilas.

Passando por eles, a pé, sempre paro para conversar e observá-los trabalhar.

Um dia desses eu ia me aproximando e o mais velho dos dois estava sentado comendo um biscoito recheado. Um rapaz numa moto parou no sinal. De longe eu via, mas não entendia a cena. O menino deu a embalagem de biscoito ao motoqueiro, que pegou uns dois e devolveu o restante.

Como a embalagem já estava na metade, o menino dizia: “não, sô! Pode ficar. Eu já comi metade”. O rapaz da moto insistia: “Obrigado, irmão, mas o biscoito é seu, pode comer”. No fim de tudo isso, o sinal abriu e o motoqueiro partiu, levando, com a permissão e insistência do menino, o restante do biscoito.

Eu acho que já devia ser umas 17 para 18 horas. Falei com o menino que tinha ganhado mais uma cesta este mês, se ele queria. Ele aceitou, explicou ao irmão mais novo que iria buscar. Ainda brinquei com eles: “Isso é trabalho infantil escravo, né? Um trabalha e o outro passeia”. Nós rimos e subimos para a minha casa.

No caminhar eu perguntei: “O motoqueiro te pediu o biscoito, foi?”.

Ele, sério, respondeu: “Não, eu que ofereci. Eu comprei o biscoito, mas essa hora os trabalhadores começam a descer das obras, com fome, aí eu divido com meu irmão e sempre deixo uns pra dar para eles. Imagina, até chegar em casa, com fome, é duro, né?”.

Eu já escrevi outras vezes sobre esses irmãos por aqui. Eles são muito educados, respeitosos, não chegam nos carros jogando o seu produto, sempre pedem autorização e esperam pela resposta. Pergunto sempre se eles estão estudando e eles dizem que trabalham só a tarde, já que frequentam a escola de manhã no aglomerado onde moram, no Morro das Pedras, região oeste de BH.

Durante a pandemia eles ficavam mais tempo na rua, sempre trabalhando.

Eu “viajo” bastante nessas pequenas atitudes nossas de cada dia. Penso muito numa visão, que para mim é equivocada, de que seres humanos têm natureza egoísta. Popularizado a partir da década de 1970, o livro “O Gene Egoísta”, do Richard Dawkins, já foi rechaçado por cientistas e estudiosos diversos. A afirmação de que somos egoístas é sustentada pela mídia, ao mostrar, reforçar e amplificar tragédias e desgraças cotidianas, omitindo incansavelmente uma infinidade diária de boas ações, em níveis micro ou macro mesmo, realizadas por anônimos.

Acreditamos que a humanidade é egoísta, mas conhecemos um monte de gente com atitudes altruístas e solidárias. Mas, na nossa mente, essas são poucas, são minoria, pois tiramos o mundo pelo colega de trabalho que nos persegue, sem colocar na balança aqueles que em simples ações se relacionam com a gente de forma solidária.

O reconhecimento de que estamos numa comunidade requer da gente consciência, que pode ser praticada, para que nossos hábitos mudem e, assim, possamos nos ajustar à sociedade que queremos.

Tolstói dizia que todos pensam em mudar a humanidade, mas o princípio disso é mudando a si mesmo. Isso não quer dizer que sejamos egoístas, mas que precisamos educar nossos hábitos e atitudes perante pequenas questões cotidianas e diante da vida.

Rutger Bregman, um historiador holandês, analisando diversos experimentos e pesquisas, diz que a nossa essência é mesmo solidária e dentre os diversos estudos e exemplos que ele cita, está um em específico, conhecido como Natal de 1914, em que soldados rivais nas trincheiras, em plena primeira guerra mundial, deram uma trégua não oficial para celebrarem juntos o Natal.

Vemos ações solidárias se espalharem diante de catástrofes e tragédias, mobilizando várias pessoas e sendo a esperança, material e afetiva, de tanta gente, mas insistimos num discurso vazio, alimentado por redes sociais e notícias “comerciais” de que somos mesmo é egoístas.

© Copyright 2024Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por
Distribuido por