Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Sou brasileiro, filho do Nordeste

Publicado em 21/10/2022 às 06:00.

Na transição da infância para a adolescência, a vida deu a mim e à minha família a chance de experimentar mais um grande desafio: com o meu pai desempregado, eu e meus irmãos em fase escolar, minha mãe resolveu adiantar a sua aposentadoria para facilitar a nossa mudança para Maceió, capital em que a maior parte da minha família paterna mora e onde meu pai, Luiz Gonzaga, poderia ter mais chances de um recomeço profissional.

Lembro do meu pai viajando antes de nós para organizar a nossa chegada; da gente se despedindo dos amigos da nossa rua, em Santa Luzia-MG, onde passamos dias tão felizes. Ali, livremente, jogávamos “rouba-bandeira”, “queimada”, “pique-esconde”. Nossos vizinhos eram praticamente uma família. Todos se reuniam nos dias das festividades, como no Natal, e por isso tínhamos um contato forte uns com os outros.

Mas era a hora da nossa partida, momento de começar uma nova etapa em nossas vidas.

A situação financeira da minha família já tinha experimentado dias melhores. Venderíamos a nossa casa em Santa Luzia e partiríamos para a casa onde residiram os nossos avós paternos, já falecidos, o que nos aliviaria as finanças, de início, neste recomeço.

Móveis e utensílios devidamente embalados e toda a mudança colocada no caminhão da Granero, empresa que marca a minha infância por este fato tão relevante da minha vida. Outra marca que carrego é da empresa Gontijo, uma vez que foi por ela que eu, minha mãe e meus três irmãos viajamos por 32 horas seguidas com destino à capital alagoana. Paradas intermináveis em rodoviárias e pontos de apoio, calor constante dentro do ônibus, que naquela época não tinha ar-condicionado e as janelas abertas para nos trazerem certo alívio.

Meu pai é nordestino, nascido em uma zona rural da cidade histórica de União dos Palmares, em Alagoas. Seus pais tiveram dezesseis filhos, sendo que doze sobreviveram. Ele foi um dos que deixou de estudar para ajudar a cuidar dos irmãos. Muitos dos meus tios conseguiram fazer o curso superior, formando-se nas engenharias, arquitetura, odontologia, medicina e trabalhando em estatais, grandes empresas ou em seus escritórios e consultórios próprios.

Meu pai trabalhou na roça, estudou só as séries iniciais e por necessidade, desenvolveu uma habilidade para vendas, algo que não herdei dele.

Falante, brincalhão e bastante querido por todos, depois que saiu da roça e foi para a capital alagoana, passou parte da vida viajando, pois trabalhava na extinta empresa aérea Panair do Brasil, o que lhe dava acesso a descontos em viagens, e depois atuou como propagandista de laboratórios farmacêuticos.

Quando mudamos para Maceió, meu pai sabia que a situação não seria fácil. Assim, trabalhou duramente como fornecedor de lanches para algumas empresas. Os sanduíches, embalados um a um com a ajuda dos filhos, e as garrafas de suco natural produzido na minha casa, tudo muito bem-feito e colocado num carro velho que ele tinha: uma brasília marrom, corroída pela maresia, mas que servia ao propósito para o qual foi comprada.

Meu pai virava as noites fazendo os lanches. Minha mãe foi trabalhar na escola de ballet da minha tia, uma aclamada bailarina. Lembro dos espetáculos da companhia da minha tia no Teatro Deodoro, o principal de Maceió, um prédio do início do século XX. Eu não entendia nada das danças, mas a leveza daqueles bailarinos me impressionava. Parecia que eles levitavam no palco.

Meu pai conseguiu alugar uma lanchonete no pronto-socorro da cidade, que ficava no nível do estacionamento das ambulâncias, inclusive no mesmo piso do necrotério. Um dia os motoristas, querendo brincar comigo, me fecharam no necrotério por alguns segundos. Não tive traumas, só saí distribuindo palavrões e tendo uma curiosidade aguçada pelo tema da morte, que hoje eu estudo com muito interesse.

Durante todo este tempo em que morei em Maceió, a cordialidade e a solidariedade das pessoas foram determinantes para que a minha família pudesse se adaptar a um novo estágio do nosso ciclo de vida. Tive uma influência cultural nordestina fortíssima, conhecendo uma parte da riqueza de um povo – nosso povo - que ajudou a esculpir o meu caráter e algumas das minhas virtudes. 

Nós tínhamos uma disciplina chamada Folclore na escola, onde aprendíamos músicas, danças, histórias tradicionais, ressaltando a riqueza daquela gente.

O Nordeste, que além de belezas naturais tem muita história, vista em fortes, casarões, fazendas, povoados, igrejas, à beira de rios e de trilhos de trem, conta a nossa história, com o rosto de um Brasil que precisamos conhecer.

“Eu sou de uma terra que o povo padece. Mas não esmorece e procura vencer [...] Eu sou brasileiro, fio do Nordeste. Sou cabra da Peste, sou do Ceará”, dizia o poeta cearense Patativa do Assaré.

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