Encontrei seu Gervásio num ônibus, saindo de sua cidade e indo para uma consulta médica. Não perguntei a idade, mas parecia já ter ultrapassado os 80 anos. Usava um chapéu de palha, camisa social devidamente enfiada na calça e um cinto apertando aquela cintura magra: a imagem típica de quem carrega o tempo com dignidade e, talvez, um toque de teimosia.
Ele me confidenciou que uma neta iria acompanhá-lo, mas teve um compromisso de última hora. Disse que não se importava de ir sozinho, pois tem um ponto de ônibus bem perto do hospital. A fala soou como uma justificativa, um jeito de disfarçar o incômodo daquela ausência. Fez uma pausa longa, e eu falei algo apenas para manter a conversa. Foi então, já mais à vontade, que ele revelou uma mágoa.
“Eu sou um homem de fé”, disse, “mas acredito que o diabo não goste de mim”. Fiquei meio sem entender a referência. Ele explicou com serenidade que havia enfrentado, e ainda enfrenta, tantos desafios e provações, que aquilo mais parecia um teste do diabo à sua fé. Sorriu de leve, mas seus olhos denunciavam um cansaço além do físico.
Aquelas palavras ficaram martelando na minha mente. Achei forte, simbólica. Sentado ali, conduzi meu pensamento para um tribunal, julgando os filhos que não o acompanhavam. A cena me pareceu injusta: um homem da idade dele, indo e voltando sozinho de uma consulta médica, saindo de uma cidade distante da capital do Estado. Rapidamente relembrei a minha própria vida corrida: os compromissos encaixados numa agenda que não cabe mais nada, as visitas adiadas às pessoas que amo, o distanciamento de algumas pessoas que gosto, mas não vejo há tanto tempo. Percebi que, talvez, eu não seja tão diferente daqueles filhos que eu, ignorantemente, estava julgando.
Esse fenômeno costuma ser chamado de “ninho vazio”. Quando os filhos partem para suas próprias histórias, os pais precisam reinventar a rotina. Alguns fazem isso com uma certa habilidade, abraçando novas atividades, amigos, projetos comunitários. Outros, porém, mergulham numa sensação profunda de abandono, difícil de administrar. Para jovens, é só a vida acontecendo; para os mais velhos, pode ser o início de uma travessia longa e marcada por sentimentos de perda.
Essa travessia pode trazer consigo uma dor invisível, mas profunda: a depressão. Estatísticas mostram índices elevados de depressão entre idosos, embora poucos percebam os sinais. A tristeza muitas vezes é confundida com “manias da idade”, aquele jeito mais calado ou muito sincero que alguns desenvolvem. Por trás do silêncio, porém, pode estar um coração gritando por atenção.
O afastamento dos filhos é um grande baque. A vida exige deles um tanto de prioridades: boletos, trabalho, prazos, filhos para criar. A tecnologia aproxima com chamadas de vídeo, mensagens, áudios rápidos, mas não substitui a presença física. O abraço não cabe na tela do celular.
Foi aí que lembrei de algo que aprendi recentemente: saúde não é só ausência de doença, é também qualidade das relações. Surge o conceito de saúde social, que destaca a importância dos vínculos, da convivência e das trocas afetivas. Um idoso com vida social ativa, cercado de amigos, vizinhos ou familiares, tem muito mais chances de envelhecer com bem-estar. A solidão, por outro lado, pode ser tão danosa quanto uma enfermidade física.
Pensei no seu Gervásio. A neta que não pôde ir certamente tinha um motivo justo: prova na faculdade, plantão no trabalho, filho pequeno para cuidar. Quem nunca precisou escolher entre estar presente e dar conta das próprias demandas? Mas, no cotidiano, esses pequenos gestos vão se acumulando, e cada ausência deixa um espaço: um assento vazio ao lado de quem envelhece.
Curiosamente, no ônibus havia muitos assentos vagos. Seu Gervásio escolheu sentar perto de mim e puxou conversa, como se quisesse preencher não só o tempo da viagem. Talvez ele quisesse apenas ser ouvido ou ter suas histórias e conquistas valorizadas.
Ser presença na vida dos idosos é estar disposto a sentar, ouvir histórias repetidas, rir das mesmas piadas, perguntar pela saúde, ouvir, sem ter perguntado, sobre doenças e remédios. Mas não se resume a isto. Pare para escutar suas histórias, suas ideias, sua forma de olhar a vida.
Seu Gervásio desceu algumas paradas antes de mim. Levantou-se com calma, ajeitou o chapéu de palha, agradeceu a conversa e partiu. Observei-o pela janela, caminhando devagar pela calçada. Dei-me conta de que ele carregava não só uma sacola com exames, mas uma mala invisível de memórias, lutas e esperanças.