Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Um bom conselho

Publicado em 02/12/2022 às 06:00.

Marcamos uma rápida reunião para pensarmos juntos quais atividades poderiam ser realizadas dentro de uma unidade prisional na cidade de São Joaquim de Bicas, MG, na intenção de que os custodiados aproveitassem o tempo ocioso, exercitassem a mente e, ainda, produzissem algo que fosse útil para as instituições sociais das cidades próximas ao presídio.

Na sala estavam dois diretores e uma pedagoga da unidade, duas representantes do Conselho da Comunidade de Igarapé-MG e eu. A ideia seria adequar uma ala, com dez celas, para a produção de artesanatos com a finalidade social. Tudo que fosse produzido seria doado para instituições sem fins lucrativos. O Conselho da Comunidade de Igarapé ajudaria com o material necessário para a criação das artes.

Ao listarmos os materiais necessários para a primeira prática, que seria a confecção de enfeites alusivos à Copa do Mundo, destinados a creches e escolas públicas, discutíamos se seria comprado o fio de nylon ou barbante.

Foi quando uma das participantes mostrou uma bolsa que ela ganhou numa das alas visitadas, feita apenas com o saco plástico da embalagem de leite.

Como cada custodiado recebe diariamente um pacote pequeno de leite, ele poderia cortar, lavar, esticar e produzir um fio, extremamente resistente, que se apresentava como uma alternativa aos demais materiais, sem custo adicional para ninguém. Aprovada a ideia, outra veio na sequência: poderíamos sugerir que os participantes do projeto fizessem algum artesanato usando este tipo de linha.

Foi assim, conversando, que surgiu o projeto Faz Bem, que transformou uma ala inteira do Presídio de São Joaquim de Bicas 1 em produção de artesanato social. E o projeto Nise, em homenagem à psiquiatra Nise da Silveira, que usava a arte para o tratamento dos seus pacientes – ou clientes, como ela preferia. No Nise, de maneira específica, faremos quatro atividades: uma mecânica, outra reflexiva, uma criativa e outra lúdica, atuando em outras alas da unidade.

Animado com a ideia, o Conselho da Comunidade providenciou o material para já darmos início à produção. A Angelita Prado, que atua no Conselho, sugeriu que os servidores também fossem envolvidos e indicassem instituições sociais para receberem as doações das artes produzidas. Assim, mais gente se uniria nesta nossa ação, trazendo contribuições diferentes.

Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), em 2019 o Brasil possuía 748.009 pessoas privadas de liberdade, o que tornava a população prisional do país a terceira maior do mundo. Desse total, 222.558 (29,7%) eram provisórios, dado que indica o amplo uso do aprisionamento como medida penal mesmo antes da condenação definitiva. Além disso, o encarceramento no Brasil é seletivo, atingindo predominantemente homens jovens – os de 18 a 29 anos correspondiam a 44,8% da população prisional brasileira em 2019. (dados da apostila sobre Conselhos da Comunidade no Brasil, do Conselho Nacional de Justiça). Para que as atividades como as que oferecemos às unidades prisionais aconteçam, há de se ter o envolvimento de muitos atores, representantes do Executivo, Legislativo, Tribunal de Justiça, Ministério Público, Defensoria Pública, OAB, coletivos e movimentos sociais, universidades, grupos religiosos, dentre outros.

Porém, quero e devo destacar a importância do trabalho do Conselho da Comunidade de uma comarca. De fora, eu ouvia falar que há cidades que possuem um conselho atuante, em tantas outras eles estão inativos, infelizmente. Como nos últimos meses eu tenho atuado voluntariamente de maneira mais intensa na comarca de Igarapé, percebi como que uma entidade dessas, bem organizada, é um braço forte da execução penal.

Acompanhando as ações do Conselho da Comunidade de Igarapé vejo que a sua atuação consiste num bem coletivo, que atinge quem está atrás das grades, mas que também impacta a sociedade como um todo, mesmo que a gente não tenha nem noção disso.

Promover atividades voltadas para a população carcerária não é, de forma alguma, estimular impunidade. Muito pelo contrário: é um esforço na construção de novas referências e perspectivas de vida para aqueles que um dia os presídios devolverão para a sociedade.

Ângela Davis fala em seus livros, especificamente na obra “A liberdade é uma luta constante”, que o abolicionismo penal depende do investimento que fazemos hoje no combate ao racismo e na entrega de uma educação de qualidade, sistema de saúde acessível e desenvolvimento social.

E como ninguém faz nada sozinho, em Igarapé o Conselho da Comunidade, criado pelo incentivo da Juíza Júnia Benevides, em 2015 e reformulado em 2018 pela iniciativa da Juíza Bárbara Nardy, conta com apoio de uma diretoria voluntária e de parceiros, como os juízes Marcelo Augusto Lucas Pereira, Wagner Cavaliere, Marina Rodrigues Brant, assim como da Pastoral Carcerária Católica, da deputada Andréa de Jesus, diretores de unidades prisionais e muito mais gente, todos importantes neste compromisso coletivo.

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