Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Você não tem mais idade!

Tio Flávio
17/03/2023 às 06:10.
Atualizado em 17/03/2023 às 07:44

Tenho que recorrer ao amigo e professor Carlos Parente sempre que eu preciso entender alguns casos da vida real. Parente disse, certa vez, que “bom senso não é senso comum”. Imagino que algumas brincadeiras, que extrapolam o bom senso e beiram o mau-caratismo, são crassas reproduções de uma sociedade que reluta em evoluir.

Desesperança, não! Desprezo e pena talvez definam melhor o que eu senti ao assistir a um vídeo em que três alunas zombam de uma colega de um curso de biomedicina em uma universidade particular do interior de São Paulo, pelo fato de ela ser mais velha, 44 anos, e que as três concordam que ela deveria se aposentar, e não realizar o sonho de uma nova carreira.

Pensei, ainda, num termo de uso corrente, que é a sororidade, que carrega a ideia da empatia entre mulheres, uma vez que só elas sabem “a dor e a delícia de ser o que é”, tomando emprestada a fala de Caetano.
Eu tenho repensado algumas das minhas brincadeiras e falas e cada vez que eu descubro algo que seja possível evitar, eu me alegro pela também feliz possibilidade de crescimento. Parei, muito recentemente, de falar que as pessoas são incansáveis. 

Por mais que isso saia em forma de elogio, nem sempre chega assim ao outro. Um dia uma amiga me disse que detesta quando falam isto dela, apesar de entender. A cada afirmação parecida, de que ela é “forte como uma pedra”, “incansável”, ela se cobra mais em não parar, não desistir, não lamentar e, aí, adoece. Ela me disse: “Eu sei que é coisa minha, Tio Flávio, porque me cobro demais”. 

Bom, se pode machucar alguém e eu posso evitar o uso, que eu busque novas possibilidades de elogios que não sejam gaiolas ou correntes para ninguém.
Pensando nisso tudo, me veio mais uma vez uma doce lembrança. Eu nasci em Belo Horizonte, morei uma parte boa da minha vida em Santa Luzia, cidade da Grande BH e em Maceió, Alagoas.

Minha mãe foi professora de matemática e ciências para alunos do antigo ensino primário. Dedicada, precisava trabalhar em dois turnos. Meu pai era mais ausente, pois a sua ocupação exigia que ele viajasse sempre. Talvez por isso minha mãe tenha assumido uma postura mais rígida, que hoje já desmoronou.
Tia Maria Luiza, como tantos ex-alunos a chamam até hoje, se faz presente na vida de muita gente, assim como vários professores do nosso Brasil.

Ela estudou em colégio interno em Belo Horizonte e cursou magistério, em nível de ensino médio. Lecionou por décadas, em escolas públicas e particulares. Aos 69 anos, ainda em sala de aula, resolveu pegar um ônibus e fazer vestibular numa faculdade da capital mineira. Foi aprovada para o curso de Normal Superior, com foco nas séries finais, juntamente com a minha irmã, que cursou o foco em séries iniciais.

Para a minha grata surpresa, minha mãe passou no vestibular na faculdade em que eu dava aula. Não fui professor dela, mas acompanhei sua alegria de aluna mais velha em meio a tantos jovens, que a acolheram prontamente, pois não eram bobos.

Um dia eu estava em sala, lecionando com a porta da sala fechada. O sinal do intervalo já tinha soado e minha mãe bate à porta, abre devagarzinho, suspende uma sacolinha branca de plástico, daquelas de supermercado, com dois sanduíches de carne, que fizeram o favor de espalhar o cheiro pela sala.

Ela não entrou, deixou nas mãos da aluna sentada próximo à porta. Todo mundo olhou e se emocionou. Lembro dos alunos batendo palmas e, depois, pedindo para compartilhar o meu lanche e a minha mãe.

Aos 72 anos ela estava no Teatro Ney Soares, de beca, pronta para se graduar. Eu fui com minha família assistir a este momento ímpar nas nossas vidas. Sentei-me na plateia, até que o mestre de cerimônias se aproxima e me convida para ir aos bastidores, colocar uma veste preta e sentar-me à mesa, no palco, para ver minha mãe se formar.

Ela não tinha me visto lá em cima ainda. Faltando cinco pessoas para chamarem por Maria Luiza, que é o nome dela, o Marcelo, mestre de cerimônias, me avisa que eu é que entregaria o diploma à minha mãe. Tremi todo.

Quando ela me viu, pulava tanto que achei que alcançaria o céu. Engano meu, pois ela já estava lá. Chegou perto de mim, me deu um abraço e me disse ao pé do ouvido algo que me recordo como: “Só é velho quem se entrega!”.
Hoje, aos 88 anos, não leciona mais, mas continua estudando. Lenine, na música “Paciência”, traduz um pouco o pensamento da minha mãe: “Será que temos esse tempo pra perder? (...) a vida é tão rara”.

Quando me falam que alguém não tem mais idade para isso ou para aquilo, como usar uma determinada roupa, frequentar certos lugares, eu logo respondo: “Meu filho, como não tem idade para isso? O que ele (ela) mais tem é idade para isso”.

*Palestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

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