Cláudia deixou três filhos com parentes na terra natal e veio para BH atrás de uma vida melhor; em meio a uma jornada pra lá de puxada, vai vencendo um desafio por dia, ao lado das caçulas (Arquivo pessoal)
A manicure Cláudia da Silva, de 32 anos, é uma entre milhões de brasileiras que se desdobram para criar os filhos. Natural de Chaval, município de 12 mil habitantes, quase na divisa do Ceará com o Piauí, tornou-se mãe de Mairlon aos 15. Além dele, que hoje tem 17 anos, vieram mais quatro filhos.
Para conseguir trabalhar, a saída foi deixar a terra natal e mudar-se com as duas filhas caçulas para Belo Horizonte, onde a lida dura de nove a 12 horas por dia. Uma rotina de esgotamento que se repete em um sem-fim de lares no país, onde mulheres se desdobram para oferecer a melhor maternidade possível à prole em meio a contas para pagar e à exaustão. Cansadas de serem chamadas de “guerreiras”, muitas questionam a vida romantizada e glamourizada das mães mostrada por influencers, novelas e cinema.
Uma pesquisa da Universidade Federal de Pelotas, encomendada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), mostra que questões socioambientais e econômicas agravam o quadro. Uma em cada quatro mães que vivem na pobreza e extrema pobreza enfrentam quadros de exaustão mental, emocional e física. No país, metade dos domicílios é chefiada por mulheres, mostra o último censo do IBGE de 2020.
Para a doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Maria Cristina Leite Peixoto, ser mãe ou não é uma decisão que cabe a cada mulher e deve partir de seu próprio desejo. Segundo ela, a romantização desse papel prejudica a escolha.
“Apesar de muitas mulheres crescerem com o sonho de ter filhos, precisamos acabar com o tabu de que a maternidade é algo natural, porque não é. Ela é social e historicamente imposta. Tanto é que, quando a gente vê uma mãe que não corresponde à expectativa, falamos que é ‘desnaturada’.Pode ser chocante o que vou dizer, mas muitas mulheres que têm filhos não deveriam ter tido e hoje, se pudessem voltar ao tempo, não teriam” , afirma Cristina.
Segundo a socióloga, a ideia de ser a mãe quase perfeita, uma heroína, guerreira, que dá conta de lavar, cozinhar, cuidar dos filhos e ainda trabalhar fora, ao se confrontar com a realidade causa muita frustração e adoecimentos.
“Ninguém dá conta de tudo. Ser mãe pode ser bonito, emocionante, mas também é castrador, difícil e, em muitos casos solitário, o que tem feito muita gente repensar se irá mesmo ter filhos”, afirma.
As análises de Cristina Leite encontram respaldo nos números. Eles mostram que cada vez mais mulheres estão abrindo mão da maternidade. Segundo pesquisa recente realizada pela Bayer, com o apoio da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e do ThinkaboutNeeds in Contraception (Tanco), 37% das brasileiras afirmam que não desejam se tornar mães.
Dicas para proteger a saúde mental
Quando uma criança nasce, a única certeza que se pode ter é que ela demandará por muito tempo cuidado, o que deveria ser compartilhado. Mas não há garantia de um pai presente, tampouco uma rede de apoio – caso de Cláudia. “No fim das contas, apesar de hoje ter uma companheira, a responsável pelas meninas sou eu, o que é bem difícil e muito cansativo”, diz.
Mas ali existe uma criança que precisa ser nutrida de múltiplas formas para ter o pleno desenvolvimento. Diante desses impasses, a socióloga Cristina Leite defende um mundo com educação sexual de qualidade e políticas públicas de planejamento familiar para que a maternidade não seja compulsória.
“A proposta é que possamos ter, sobretudo, uma conjuntura que priorize o engajamento tríplice entre família, sociedade e Estado diante das necessidades das crianças, nos diferentes estágios da vida”, diz.
Os desafios da maternidade para a comerciante e professora de ioga Andrea Resende Dutra foram mais intensos durante a adolescência das filhas Fernanda e Luíza. Na época, nem a ampla rede de apoio foi suficiente para que desse conta dos desafios.
Andrea ficou viúva muito cedo, mas sempre pôde contar com a ajuda dos próprios pais na criação das garotas. “Tive o privilégio do suporte da minha família e de babás. Ainda assim, a adolescência delas foi um período muito pesado. Ser mãe pode ser difícil em qualquer momento e não apenas nos primeiros anos de vida das crianças. Busquei para elas e para mim ajuda profissional de um terapeuta”, diz.
Mas é claro que a mulher pode ser mãe e conciliar essa missão com a carreira de uma maneira mais saudável. “Para isso, é preciso buscar o equilíbrio e adotar algumas atitudes”, ensina a psicóloga e psicoterapeuta Paula Coaglio. Na visão da especialista, a mulher precisa se conscientizar de que não é obrigada a dar conta de tudo”. “Não existe isso de fazer tudo ao mesmo tempo e de ser uma super-heroína. Aceite que você é humana e tem limitações”.
Há 17 anos, Paula trabalha com grupos terapêuticos e tem percebido a chegada no consultório de mulheres cada vez mais sobrecarregadas e com a saúde mental mais abalada.
Para a psicóloga Paula Coglio, o desafio para as famílias com crianças passa a ser construir novas ideias do que significa ser mãe ()
“São mulheres que se dedicam tanto aos outros (marido, filhos, demandas de chefes) que se esquecem de cuidar de si, o que gera um ciclo vicioso de sobrecarga. Elas reclamam que não saem mais com as amigas, não fazem mais o que faziam antes”, conta.
O caminho é buscar o equilíbrio e lembrar-se de que não há como cuidar do outro sem cuidar antes de si. “Não precisa de muito tempo e não é egoísmo pensar em si como indivíduo e como mulher. Sugiro criar rotinas de atividades físicas, ficar sozinha, relaxar, fazer pequenas pausas para se alimentar bem, descansar a mente e se sentir útil, não apenas como mãe”.
No limite
“Mãe cansada” foi o termo líder de pesquisas no Google em 2021. O adjetivo “cansada” também passou a ser mais procurado do que a versão masculina, “cansado”, desde 2015. Com o início da pandemia, em 2020, a expressão começou a vir acompanhada da palavra “mãe” ou “maternidade”. O resultado por notícias, textos ou outros materiais mostra que o esgotamento mental e psicológico é uma realidade maior para as mulheres, especialmente as mães.
Pandemia
Mães de todo o Brasil, em especial as em situação de vulnerabilidade social e econômica, muitas delas solo (sem contar com a ajuda de um parceiro) e que viram a renda despencar na pandemia sofreram um impacto muito grande na saúde mental.
“Passaram a lidar com questões bem complexas. Todo dia chega para mim uma mãe com algum tipo de ansiedade ou outros transtornos mentais sérios e que abalaram estas mulheres inclusive fisicamente”, diz Paula Coglio.
Foi o que aconteceu com a manicure Cláudia . Ela conta que chegava em casa chorando, pois achava que não teria como sustentar as filhas quando o comércio e salões tiveram que fechar temporariamente.
“Fiquei com muita ansiedade, tive crises de pânico. Ia para o salão todo dia e fica esperando as clientes, mas muitas desmarcavam o procedimento em função do medo do contágio e eu vivia mais um dia cansativo, estressante e sem dinheiro”.
A despeito das dificuldades, aponta Paula Coglio, o desafio para as famílias com crianças passa a ser reinventar identidades, construindo novas ideias do que significa ser mãe, e se sentir confortável com essa relação. A existência do “outro” – seja este o pai, uma avó, uma creche – é fundamental para a saúde física, mental e emocional de qualquer cuidadora ou cuidador, garante a psicóloga.