Comissão traz à tona violência contra índios em Minas na ditadura

Ricardo Rodrigues - Enviado especial
23/02/2014 às 08:14.
Atualizado em 20/11/2021 às 16:13
 (Samuel Costa)

(Samuel Costa)

CARMÉSIA E RESPLENDOR – Prestes a completar 50 anos do golpe militar de 1964, novas histórias de violência ainda vêm à tona. Como as agressões cometidas por militares aos povos indígenas. Os casos são investigados pela Comissão da Verdade de Minas. O trabalho de resgate dos fatos está sendo feito em parceria com o Ministério Público Federal (MPF) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi-Leste).   Os caciques Baiara Pataxó e Douglas Krenak atuam como consultores do grupo coordenado pelo ex-vereador Betinho Duarte (PSB), membro da Comissão da Verdade, que investiga massacres contra os povos Guarani, Krenak e Pataxó no Estado, ocorridos durante o regime militar.    As tristes lembranças desse período estão ainda na memória dos antigos, os “troncos velhos”, das Terras Indígenas (TI) Guarani, em Carmésia, e Krenak, em Resplendor. Integrantes do MPF estiveram nesses locais no Vale do Rio Doce, onde índios de várias partes do Brasil eram submetidos a trabalhos forçados e sessões de tortura.   A colônia penal Guarani aprisionou em Carmésia índios considerados ‘delinquentes’ e grupos que lutavam por suas terras. Era uma continuação da experiência de confinamento de índios incrementada em 1968 com a instalação do Reformatório Krenak, em Resplendor.   Em Minas, segundo foi apurado pela Comissão da Verdade, “as agressões foram cometidas por policiais militares”, disse Duarte. Relatos de índios ao Hoje em Dia, que foi às duas cidades, confirmam a violência a que foram submetidos. Violência que também foi registrada em documentos oficiais, como o Relatório Figueiredo, que investigou massacres de povos indígenas, com a participação do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI).    O trabalho, coordenado pelo procurador Jader de Figueiredo Correia, indicou que, além da corrupção sistêmica no órgão – mais tarde substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai), parte de seus agentes praticavam escravidão e tortura de índios brasileiros.   Exploração   O documento com as conclusões da investigação tem mais de 7 mil páginas que supunha-se estarem perdidas, mas foram localizadas em 2013 no antigo Museu do Índio, no Rio de Janeiro.    “De maneira geral, não se respeitava o indígena como pessoa humana, servindo de homens e mulheres como animais de carga, cujo trabalho deve reverter ao funcionário. No caso da mulher, torna-se mais revoltante porque as condições eram mais desumanas”, anotou Figueiredo em uma das páginas digitalizadas por Marcelo Zelic, vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais e coordenador do Armazém Memória.   As denúncias de escravidão aparecem nos relatos das “dezenas de testemunhas” e “centenas de documentos” que fizeram parte da apuração pedida pelo Ministério do Interior e motivada por uma Comissão Parlamentar de Inquérito, instaurada em 1963.    “O trabalho escravo não era a única forma de exploração. Muito adotada também era a usurpação do produto do trabalho. Os roçados laboriosamente cultivados eram sumariamente arrebatados do miserável sem pagamento de indenização ou satisfação prestada”, ressalta o procurador.   Policiais exploravam a mão de obra nas lavouras   O krenak Veríssimo, de 56 anos, recorda que saiu corrido de Resplendor, em companhia do pai, para não morrer ou sofrer como os demais índios. Foi parar na aldeia Cachoeirinha, no Mato Grosso do Sul.    Segundo os mais velhos, a Polícia Militar levou para as aldeias de Minas indígenas de várias etnias: krenak, Pataxó, Guarani, Maxakali, Xacriabá, Xavante, Tuxá, Pankararu.    No começo, a explicação dos PM é de que tinha pouco índio nessas aldeias.    Os krenak não se deram bem na Fazenda Guarani. Eram pescadores e caçadores, não ficaram, fugiram para Resplendor em 1981, conta o cacique krenak Zoim, o Luiz Viana.    Com alívio, ele diz que a vida na aldeia melhorou. “A gente cria gado, tem a escola e posto de saúde”.    Dona Maria, da aldeia Pataxó, conta que os “tenentes” faziam a cultura nas roças, o índio trabalhava a meia. “A polícia dava a terra preparada, a semente. Os meeiros entravam com o serviço”.   Ela comenta que conhece todas as grotas e nascentes do local. “É a terra mais rica de água, a herança dos que vão nascer daqui a 500 anos”.   Para sair da aldeia, só com ordem da polícia   Thiundaíba - o martim-pescador, na língua Pataxó - tem 88 anos, dos quais 39 vividos na Terra Indígena Guarani, em Carmésia. Veio da Bahia em 1975. “Os índios não podiam sair sem permissão do chefe do posto. Só com ordem por escrito. Se desobedecesse, o capitão mandava prender”, diz.    Era o tempo do capitão Pinheiro, o chefe geral de todas as aldeias indígenas. “Mais de 300 pessoas foram aprisionadas aqui. Depois foi acabando a pena deles e foram levados de volta”, conta.    “O capitão Vicente veio antes do Pinheiro. O Vicente era um carrasco. Mandava prender, mandava bater”, ajunta dona Maria Benedita dos Santos, a esposa. “Antes, todos foram escravos do Magalhães, o português que era dono da terra. A gente trabalhava feito burro, passava necessidade”. Segundo ela, mais da metade da terra indígena foi roubada por Magalhães.    “Nascida e criada aqui, como meus pais, o primeiro nome do ‘patrão’ nunca soube. Ele veio de Portugal; a dona dele, de Montes Claros”. Depois que o português morreu, “a polícia entrou, veio fazer os treinamentos dela aqui, a mando do governo. Essa rua toda era policia. O treinamento militar era feito à noite. ‘Vocês não saiam a noite’, era a ordem. A gente ficava quietinho dentro de casa”, relata Maria.   Indígenas relatam histórias de muita dor e vergonha   “A Polícia Militar maltratou muito o krenak”, conta o índio Tracu, o Zezão, de 60 anos. “Eu tinha quatro anos de idade quando fomos levados para Maxakalis, no Vale do Mucuri. Depois, parte dos índios foram transportados para a Ilha do Bananal. Um dia fugimos”.    Os índios andavam a pé, levaram três meses para retornar à aldeia krenak, em Resplendor. Adultos e crianças comendo banana e mandioca, quando algum fazendeiro dava.    Segundo ele, Sebastiana, a tia de Douglas Krenak, um dos consultores da Comissão da Verdade, por causa de uma dose de pinga ficou presa oito anos. Bastianinha, como era chamada, já morreu. Já Valdemar Dias, o pai de Douglas, era menor de idade e ficou preso no reformatório. Chegou a ser amarrado pela cintura com uma corda e foi puxado por cavalo, porque depois do trabalho forçado foi pescar no Rio Doce.    Zezão recorda que a enchente do Rio Doce, em 1979, derrubou o prédio da prisão construído na aldeia Krenak. “Aqui era cheio de polícia. Tinha o Valadão, Vicente, Oséas, Eustáquio, Orédio, que tinha um barrigão, mas era mau”.    As crianças não sabiam de nada, mas os adultos contam que sofreram muito. “Meu coração até dói. Os mais velhos têm desgosto, vergonha e tristeza do que passaram”. Ele conta que sua mãe, de 111 anos, não mora mais na aldeia, mas quando vem, chora sozinha na beira do rio.    Manelão   “Fiquei preso uns doze anos aqui. A Polícia batia tanto nos krenak que era preciso banhar com água e sal depois”, recorda Manelão Pankararu, que se casou com uma krenak e vive na aldeia de Resplendor há mais de 40 anos.    “Foi o capitão Pinheiro que levou a gente para a aldeia Guarani, em Carmésia. Esse cara arrebentou os krenak. Tiraram nós na marra, jogaram todos dentro de um vagão de trem. Algemaram até os velhos. Foi gente levada também para São Paulo. Meu avô Joaquim Grande foi amarrado, mas depois fugiu. Todo mundo apanhou e foi maltratado”. Ele plantou mandioca e cana, sem ganhar um real. “Se brincasse, o pagamento era o couro na cacunda. O canário dentro da gaiola não pode fazer nada”.

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