River, Boca e senso de justiça

27/11/2018 às 19:27.
Atualizado em 28/10/2021 às 02:24

Toda a repercussão em torno do vergonhoso episódio do último sábado em Buenos Aires denota como é comum, no meio do futebol – imprensa, público... –, uma inversão de valores sobre a qual já falamos por aqui várias vezes nos últimos anos: uma espécie de “punitivismo”, de preguiça intelectual que endossa um apego a uma falsa “coerência”, um vício que condiciona a permanência num tipo de superfície prevalecem frequentemente diante de uma inteligência, digamos, mais intuitiva, perceptiva – e verdadeira. Bom senso, feeling, capacidade de apreender proporção, de distribuir culpabilidades... Tudo isso perde dia sim, outro também, para um espírito de “Zé Regrinha”. Se houver uma jurisprudência equivocada e/ou minimamente similar com o caso em questão – ainda que permeada por diferenças substanciais, suficientes para alterar completamente a essência –, então... Muito mais fácil, confortável ater-se à “exatidão” do “lógico”, do “racional”, ficar no plano total da representação, do que dotar-se da aptidão mínima para ler a ideia, o fundamental, o justo.

Uma coisa é notar o óbvio absurdo do episódio. Outra é, por outro lado, não detectar o que teria de estar também escancarado: o que toda uma gama de profissionais do River tem a ver com meia dúzia de “barra bravas” criminosos, completamente imbecis? Isso sem falar até na esmagadora maioria da gente “Millonaria”, na falta de zelo para procurar saber as parcelas do Estado, da segurança pública e da Conmebol na montagem do precário esquema de segurança para o ônibus do Boca. São muitas nuances – e opiniões taxativas dadas sem considerá-las infimamente. Não dá para achar que basta uma canetada. Que o certo é sempre “não ter jogo”, “perder pontos”, “cortar mandos” – nesta circunstância específica, me parece inicialmente até razoável, bem plausível não haver o cotejo no Monumental, diga-se. O River muito provavelmente merece sanções bastante pesadas? Sim. Mas cancelar o duelo, algo tão grande e, principalmente, que traz repercussões tão decisivas para quem não estava envolvido no malfeito – e ironicamente, de lambuja, não punindo exatamente os autores da bobagem –, em si...

Outra peculiaridade dos desdobramentos talvez seja, em determinado sentido, filosófica demais para algo que já degringolou tanto, já se situa tão afastado, em geral, de um mínimo refinamento nos valores; ainda assim, não deixa de me incomodar: o Boca não deveria querer, sequer se prestar à tentativa de ganhar no tapetão. Se posicionar, manifestar sua repulsa, reivindicar concretas e veementes consequências? Ok. Mas, entre outros aspectos, caso levados pela fidelidade a uma gama de mandamentos que haveriam de fundamentar a essência dos esportes, pelo apreço ao conhecimento e à conquista do que seria o genuíno triunfar, os “Xeneizes” absorveriam que, vencer desta forma, nesta situação, não proporcionaria qualquer sabor. Sequer seria vencer...

Recentemente tratamos nesta coluna do ótimo livro “La Doce”, de Gustavo Grabia, que esmiúça toda a inacreditável influência que a maior torcida organizada do Boca possui no clube e na política argentina. Conforme noticiado no domingo, tudo indica que a principal “barra brava” do River esteve por trás da confusão que transformou a “final do mundo” no “mico do ano” – sobre esta provável autoria recomendo o texto extremamente informativo de Mauro Cezar Pereira no jornal “Gazeta do Povo”. Ampliando o alcance das reflexões, tendo em vista a conivência que os clubes costumam ter com suas organizadas na Argentina, talvez venhamos a encontrar algum resquício de responsabilidade do River, institucionalmente falando. Ainda assim, considerando a promiscuidade da relação do Boca com seus hinchas “profissionais”, a agremiação não recairia num despudor muito além da hipocrisia ao reclamar? Se adentrarmos nesta seara, a expressão “poço sem fundo” virará uma subestimação... 

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