(Casa Dos Quadrinhos/Divulgação)
Se fosse outra pessoa, poderia facilmente ter desistido da carreira. A ilustradora e roteirista mineira Rebeca Prado, porém, não deu ouvidos ao professor que comparou os primeiros trabalhos dela na faculdade ao pano de limpar pincéis. Poucos anos depois, ganhou elogios entusiasmados da americana Gail Simone, autora de quadrinhos famosos como os de “Elektra”, “Mulher Maravilha”, “Aves de Rapina” e “Batgirl”.
Hoje, com 30 anos, é dona de publicações que alcançaram uma legião de fãs Brasil afora e entrou para o time de Mauricio de Sousa como roteirista das histórias da Turma da Mônica Clássica. Por estas ironias do destino, é também professora da Casa dos Quadrinhos, a sua primeira escola. “É um espaço cultural que sempre foi muito presente na cena de quadrinhos de BH, mesmo antes de se ter uma cena real aqui”, derrama-se.
Para quem deseja conhecer mais do trabalho de Rebeca, uma oportunidade será a quarta edição da Feira de Quadrinhos da Casa, que acontecerá no próximo mês. Ela estará à frente de um workshop que abordará o seu processo criativo na ilustração de livros infantis. E participará, ao lado de outros grandes nomes, do “Artists’ Alley”, quando os convidados poderão apresentar sua arte diretamente aos fãs e comercializá-la.
Os elogios de Gail Simone ao seu trabalho, n a passagem dela por Belo Horizonte em 2013, durante o Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), significou um divisor de águas na sua carreira?
A Gail Simone é uma referência dentro do nicho que eu trabalho e no universo dos quadrinhos e da cultura pop. Em nenhum sonho meu eu imaginava que poderia receber um elogio dela. Eu fiquei muito chocada e grata pelo carinho dela. Querendo ou não, quando a gente está começando a produzir, este tipo de retorno muda muita coisa. Minhas amigas leram quando ela perguntou do meu trabalho no Twitter e eu não tinha visto, porque não sou uma pessoa de redes sociais. Quando elas avisaram, a Gail já estava chegando (<CF36>no estande</CF>). Foi um caos maravilhoso.
Fiz essa primeira pergunta porque, quando estudante das Belas Artes na UFMG, você recebeu um banho de água fria de um de seus professores, que chegou a dizer que um pano de limpar pincéis era mais artístico que o seu trabalho.
Como aquilo lhe impactou na época?
Me formei em artes visuais com a especialização em cinema de animação. Até eu realmente entrar na especialização, eu me sentia um pouco deslocada, porque eu não estava nem num lugar mais mainstream nem me identificando com esta arte de ateliê, de exposição, que era a experiência mais comum que eu tinha na Belas Artes. Eu custei a descobrir o que eu queria fazer. Lá dentro eu me sentia sozinha neste tipo de estímulo. Os professores ajudavam do jeito que eles conseguiam, mas o quadrinho não era muito a referência deles. Quando entrei na animação, isso melhorou um bocado. Com professores com bagagem mais parecida com a minha, eles me direcionavam de forma mais precisa. </CW><CW30><CS9.6>Até chegar a esse momento, eu fiquei vagando por muitas referências, sem me identificar muito com nada. A conversa com a Gail foi muito boa porque aconteceu depois que eu saí da faculdade.
Outra pessoa, ao ouvir as palavras do professor, talvez teria desabado e desistido de continuar no segmento. O que lhe fez não esmorecer?
Durante muito tempo eu fiquei ressentida. Hoje em dia, sendo professora também, eu entendo um pouco melhor. A abordagem não foi legal, mas não me destruiu. Talvez tenha sido o que de melhor ele tinha a oferecer naquele momento. Como já fará dez anos que eu me formei, carregar este tipo de coisa não me faria bem.
Mas este exemplo real serviu para você entender melhor o papel de professora, função que você desempenha na Casa dos Quadrinhos desde 2014?
Sempre que possível, eu tento caprichar na troca, lembrando que o aprendizado está muito ligado ao afeto. O que eu faço é não tentar neles uma coisa que funciona só para mim. Tem que saber dar o puxão de orelha na hora certa, de um jeito que faça os alunos mais pensarem do que ficarem tristes e paralisados. Cada caso é um caso. Não é como ser professora de Matemática, em que só há um jeito de fazer a conta. Não tem como eu oferecer as minhas referências para um aluno que não conversa com o meu trabalho. Tenho que estudar para entender o que ele procura e como posso ajudá-lo. É muito gratificante quando os alunos me procuram para falar o que fizeram depois, percebendo que muita coisa passa, mas que eu, de certa forma, fiquei.
Quando é que você encontrou o seu estilo?
A gente muda tanto ao longo da vida, por que não mudamos o nosso jeito de trabalhar? O estilo passa mais por sua intenção e sua coleção de referências, entendendo como trabalha naquele momento, do que simplesmente ter um tipo de traço ou narrativa. Eu tive muitas experiências com referências diferentes e, em alguns casos, eu fui para alguns lugares em que hoje eu olho e não me identifico mais. Mas na época, aquilo fazia sentido. Algumas coisas permanecem intactas. Como de todo mundo, o meu estilo começou meio perdido e depois fui alinhando. Hoje em dia, eu me identifico mais com ilustrações narrativas. Mesmo quando faço uma ilustração, eu quero que ela conte alguma coisa. Eu me preocupo muito com a narrativa. Eu aprendi com o tempo a usar técnicas diversas. Eu era muito medrosa neste sentido. Se eu achasse um lugar de trabalho, era só aquilo. Qualquer coisa fora disso me enchia de pânico. Agora fico mais tranquila quando tenho que sair daquilo que funciona, sem deixar de manter uma unidade, principalmente na intenção que coloco. Como profissional, eu entendi que existe uma coisa que é meu trabalho pessoal e há as demandas que eu atendo. Posso colocar a minha identidade, mas em algum momento ela se mescla com o que me foi pedido.
E como você chegou à viking Lif, um de seus personagens principais? Ela carrega muito de sua personalidade?
É mais uma coisa de “foi” do que de “é” parecida comigo A Lif foi criada em 2015 e aquele era um momento diferente de minha vida. Na época, eu me identificava muito com ela. Hoje me identifico ainda, mais de forma saudosa. A Lif foi um ótimo exercício narrativo, super baseada em mim, até fisicamente. Eu descobri muito sobre criação de personagens a partir de uma conversa comigo. Não tinha como burlar a personagem, ajudando-me a entender sobre consistência e coerência. A Lif, como eu, era um pouco resistente com as coisas, um pouco defensiva. Não que eu seja assim hoje, mas as propostas mudaram. A Lif me ajudou a testar os meu limites de uma forma mais protegida e a processar muitas coisas.</CW>
Como é que surgiu o convite para trabalhar como roteirista nos estúdios de Mauricio de Sousa?
Aconteceu muito a partir do que já produzia no campo do humor. Em 2017, eu recebi uma orientação do Sidney Gusman editor na Mauricio de Sousa Produções sobre o fato de eles estarem procurando roteiristas mais jovens. Ele, que sempre foi muito querido com os meus trabalhos, me sugeriu que eu fizesse um teste. Passei e estou lá até hoje.
E lá você não desenha, não é verdade?
Como eu falei, antes eu tinha muito medo de coisas diferentes. Eu achava que tinha que desenhar. Depois que fui fazendo quadrinhos e estudando mais sobre roteiro e cinema de animação, passei a entender mais de escrita e de narrativa. Hoje em dia é uma coisa que sou apaixonada. Amo fazer roteiro tanto quanto desenhar.
O lado fanzineiro e independente, com publicações viabilizadas a partir de crowdfunding, aparentemente não foi abandonado por você.
Sigo firme e forte. Tenho um financiamento recorrente no Catarse. Não é um financiamento para um projeto específico. É voltado para pessoas que querem consumir um conteúdo mais exclusivo. Eles contribuem mensalmente com quantias diversas. Assim consigo fazer um trabalho mais autoral sem me preocupar muito com renda. <CW32>Com o que ganho, consigo tirar uma parte boa do meu tempo para me dedicar a estes projetos. Eu ainda produzo muita coisa de forma independente, não só ilustrações. No ano passado, eu lancei, por exemplo, um tarô. O que não quer dizer que não gosto de trabalhar com editora. Cada meio e proposta têm suas peculiaridades.